MARTINHO OFREDUCCIO:O GATO POETA

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sexta-feira, 17 de julho de 2009

ENTREVISTADA POR UMA AMIGA

Isabel Monteverde nasceu em Viana do Castelo, junto às margens do rio Lima, conhecido por rio Lethes, ou rio do esquecimento.
A conversa foi realizada em sua casa, durante uma tarde, no Porto, no dia 26 de Abril de 2009. Dadas as circunstâncias de tempo e a natureza coloquial da entrevista terem sido factores a considerar neste trabalho, ponderei uma análise sucinta, tendo por finalidade ressalvar o conteúdo da entrevista e a ele dar uma forma visível da invisibilidade com que se reveste a sua vida.

***
EM VERDES ANOS À DESCOBERTA DO MUNDO

A questão que me coloco frequentemente é a de saber o que representa o tempo psicológico na minha vida, pois sei ser nele que me devo concentrar. Uma das razões para questionar a minha posição numa dimensão interior prende-se com a curiosidade sobre a própria vida. Sei muito bem que tenho um pensamento abstracto e que isso é, por vezes, mal compreendido, sobretudo em situações concretas, vejamos, por exemplo, em relação à minha incursão no ensino secundário, como professora. Não era aquele lugar que me pertencia. E não é uma arrogância minha, apenas a constatação de não ser, profissionalmente, uma professora que gostasse de conviver com os alunos dessa faixa etária, embora gostasse deles e principalmente dos "apelidados" deficientes.
Nunca pensei em termos de me culpabilizar por este sentimento, conheço-me suficientemente bem para saber que a desvalorização da carreira de docente teve muita influência na minha decisão de abandonar o ensino e é curioso que eu adore escrever para crianças...contar-lhes histórias, inventar lenga-lengas, divertir-me a versejar palavras que me fizeram sonhar quando era criança...enfim, serei eu uma eterna criança?
Recordo a minha infância, os contos que me liam à noite, depois o gosto pela leitura, penso que este gosto surgiu antes da minha paixão pela pintura, muito antes...
Entrei para um jardim-escola aos 4 anos e não gostei. Depois do primeiro dia, os meus Pais não insistiram e fizeram bem, tiveram a sensatez de verificar que eu pedia mais. No ano seguinte entrei para o colégio, onde estive, como aluna externa, durante 7 anos e aí senti-me sempre bem. Nem os momentos de medo, quando as freiras batiam em algumas colegas, me causaram danos. Tudo isso fez parte do crescimento. No colégio não havia qualquer forma de competição agressiva...estou agora a recordar-me de momentos deliciosos, quando na 2ª classe, a Irmã Maria da Paz nos presenteava com mimos, era uma boa pedagoga. Por exemplo, sempre que tínhamos zero erros nas redacções, dispensava-nos da aula para passearmos pelos claustros, com um livro na mão.
A leitura passou, então, a ser associada a tardes felizes e de reflexão. Mas já antes as freiras tinham feito um reparo à minha Mãe, dizendo que eu aprendia facilmente, mas ficava muito tempo a olhar pela janela, perdida no olhar. Eu rio-me porque sei exactamente o que me puxava para esse lado exterior da vida...pensava muito na distância e isso intrigava-me. Ainda hoje olho para os contrafortes do edifício, ao lado da Igreja, e recordo que era através deles que o meu olhar interior divagava, o que estaria para lá desses muros de pedra? O mar? E o mar onde acabaria? E o mundo teria um fim? Essa distância inexorável entre o meu ser e o mundo já fazia parte de mim.
E o tempo voava e por isso creio que o meu percurso teve a ver com estes primeiros anos...não é por acaso que ao descobrir os românticos, principalmente, John Ruskin, tenha compreendido tão bem o significado das pedras, da memória e do tempo que passa...
Pois, é-me tão fácil recuar e avançar no tempo, associar tudo, estabelecer pontes de ligação, fazer da minha própria vida um poema...agora, de repente lembrei-me do medo...devia ter 6-7 anos, quando nas férias de Natal fui ao colégio e encontrei a Irmã Maria da Paz. Andava há semanas com um dente pendurado e ninguém me convencia a dar-lhe um puxão, o certo é que esta freira conseguiu e eu livrei-me do dente de leite. Primeiro, elogiou-me a roupa, disse-me que estava muito bonita, depois perguntou-me o que tinha na boca e eu abri-a inocentemente...zás, a mão dela foi rápida! O dente saíu com facilidade. Claro, quando cheguei a casa a minha Mãe desatou a rir, como quando eu caía nas escadas, sempre foi jovial, contrariamente ao meu Pai, que me pedia para eu andar no baloiço só quando ele estivesse presente.
Foi uma medida certa de bom senso, pois sou muito cautelosa e ao mesmo tempo muito jovial...e como recordo com ternura os passeios com o meu Pai pelo jardim, os jogos de esconde-esconde: "Pai agarra a menina!", o bolo gema na pastelaria no regresso a casa. Isto é saber educar, eu reconheço nos meus Pais essa capacidade. Ternura, respeito, incentivar a imaginação, impôr disciplina, regras e limites, inculcar o sentimento de prazer e curiosidade que os livros proporcionam...
Por exemplo, quando ia de carro com o meu Pai, eu lia todas as terrinhas por onde passávamos, aos 6 anos já lia perfeitamente...lembrei-me de um poema, "O cantarinho de barro", como sorriam os meus Pais ao verem-me a declamar...mas, voltando atrás, estava a falar do processo de incentivo natural à aprendizagem, o meu Pai contava sempre à minha Mãe e muito feliz que eu tinha lido com correcção os nomes das terrinhas...a minha Mãe sorria. Tal como o faz ainda agora quando diz que saio ao meu Pai, que tanto gostava de ler e escrever, era colaborador num jornal regional, logo após o 25 de Abril foi um dos fundadores de outro jornal, além da biblioteca dos Estaleiros de Viana que criou. Bem, o Avô paterno do meu Pai era um bom bibliómano, tinha uma grande biblioteca pessoal, que ardeu um dia quando o meu Avô era pequeno. Estava junto a uma vela e a brincar derrubou-a, resultado, as barbas desse meu bisavô arderam. Alguns livros foram-se no incêndio.
Nas tardes de Verão, quando chovia, ficávamos em casa. Naquela altura, a casa dos meus Avós maternos enchia-se de gente, tios que vinham de férias, primos, amigos. A mesa estava sempre posta e no aparador empilhavam-se travessas e pratos brancos com uns delicados arabescos onde nasciam rosas. A sala de jantar era o lugar de permanência e passagem, os tios que entravam e saíam, o meu Avô que subia e descia as escadas do sótão, onde se entretinha a fazer talha de madeira. E nessas tardes, a minha Madrinha inventava jogos, inventava temas para escrevermos histórias. Nunca os temas foram sobre a vaquinha, o barquinho, tudo em “inho”, como se aprendia na escola. Recordo-me de um tema que adorei, A Caneta…
Como recordo com ternura os passeios com o meu Pai pelo jardim…
Sempre fui autónoma, em muitas coisas. Aos quatro anos sabia cuidar de mim, sabia vestir-me e calçar-me. Na praia, depois do banho enxugava-me sozinha, nunca quis que mo fizessem. Era muito brincalhona e palradora, mas depois do banho afastava-me, estendia a toalha na areia e tirava da mochila vermelha o pão com mel. Perdia-me a olhar o horizonte.

Ainda não há muito tempo o meu irmão me disse que eu tinha sido muito mimada, talvez, apesar de, dadas as circunstâncias, o meu irmão ter tido muita atenção dos meus Pais. Não é fácil, nem o foi naquele tempo, ter um filho hemofílico. Não havia tratamento adequado, mas o que mais preocupava os meus Pais era o futuro dele, a preocupação nos estudos, até onde ele poderia chegar? A primeira meta era completar o 5º ano, que corresponde agora ao 9º. Depois desta meta cumprida, o meu irmão prosseguiu e fez duas licenciaturas, em Física Teórica e em Astrofísica, duas pós-graduações, um mestrado em Matemática Aplicada.
A minha experiência no que respeita à forma como se educa diz-me tudo isto... Sim, penso que dentro dos nossos limites, e da fragilidade do nosso corpo, podemos vencer o tempo, o que quero dizer é ultrapassar barreiras no sentido da acção, contrariamente à inércia, ao ponto zero que por si é já potencialidade, é desafio, desde o início dos tempos. E é nesse ponto que tudo nasce...de que me serviria ter ingressado numa área que não era a minha, a Literatura, se não conhecesse bem a Bíblia, se não tivesse lido Stº Agostinho, Stª Teresa d'Ávila, S. João da Cruz? Bom, para mim foi essencial tê-los lido, quer as obras dos poetas, escritores, músicos, quer as dos pintores, têm toda uma tradição baseada na cultura europeia...Antiguidade Clássica e Cristianismo. E é entre estas duas tensões que o tempo ganha forma, o tempo cíclico das estações e o tempo escatológico.
Mas, o que é feito da História, o que fizeram à Filosofia nas escolas? É impossível alguém compreender qualquer cultura exterior à nossa se nem essa conhecemos, se nem a nossa Língua respeitamos. Eu não estou a ser radical, de forma alguma...a propósito, muito mais radical é o crítico americano, Harold Bloom...não sei se ele é avesso totalmente às novas ferramentas conceptuais, eu não sou, gosto de ir navegando, tenho dois Blogues.
As datas não são significativas senão para a História, na vida de uma pessoa elas nem deviam existir, travam o processo da acção, alienam. Elas não me pertencem, confundo-me com o tempo, por isso gosto de “garimpar” nas redes, é um mundo que foge a qualquer percepção do real, as pessoas são virtuais, mas são reais, é estranho este mundo, deixa-nos perplexos, criam-se afinidades e amizades profundas.
Interessa-me, claro, esse aspecto da tela, porque isto é uma tela, sem profundidade, como diz Bloom...E é um círculo em labirinto, volto de novo à questão do tempo.
O que pensa um professor do ensino básico e secundário relativamente a todas estas solicitações, administrativas, informáticas, será que a sua "performance", tal como ainda outro dia li numa publicação, terá limites? Até onde poderemos ir nesta sociedade, onde a superficialidade da tela de um computador nos leva pelos caminhos da navegação?
Julgo que há tanto em que pensar e hoje não se pensa, é o "ir" apenas, às vezes sem rumo, sem a profundidade do pensamento. As escolas foram invadidas por uma substituição perigosa do saber. Não é preciso grandes exemplos, as pessoas vão de férias e conhecem lugares, mas na volta pouco mais sabem, estou a falar de uma maioria. A realização do ser humano está em ir aprendendo.


A MUDANÇA EM PORTUGAL


A viragem no tempo foi alucinante e em Portugal, com o 25 de Abril, as classes menos favorecidas ascenderam economicamente, mas o nível de semi-analfabetismo acentuou-se...no 25 de Abril eu estava a frequentar o 7º ano, corresponde ao 11º, não é?...Fiz o serviço cívico, havia uma grande confusão, na altura, havia o sonho, a utopia...entretanto, os governos sucessivos não souberam investir na educação, na cultura, criaram distopias autênticas.
Generalizaram-se as pedagogias, ao mesmo tempo, sabemos bem que o aspecto economicista imperou em vários sectores da sociedade. A Escola tornou-se uma arma política...mas, voltando atrás, eu falava desta coisa da electricidade, daquilo que MacLuhan defende como Filosofia dos media, o medium frio. A modernidade pertence ao medium quente. O homem moderno, a partir do Renascentismo, representava o mundo na sua linearidade, isto é uma concepção do tempo...o Pós-modernismo substituiu a ortodoxia da 1ª metade do século XX por uma síntese interpretativa que se reflectiu nos pedagogos. A criatividade passou a ser um lema, sem contemplação pelas formas do saber, isto também é uma concepção do tempo.
E é assim que os políticos fazem discursos demagógicos...muitos computadores, muito incentivo à criatividade, mas saberão do que falam? Também não interessa, quem os ouve é semi-analfabeto, eu desespero com esta situação triste, esta irresponsabilidade perante as futuras gerações...já cá não estou nessa altura, mas a minha paixão pela escrita não me deixa ficar muda. Quem se preocupa com estas questões preocupa-se com os outros.


UM EPISÓDIO SEM REGISTOS


Depois de ter feito o serviço cívico no Comando da Polícia de Viana e ter preparado alguns polícias para os exames do então ensino preparatório e ensino geral, entrei para a Faculdade de Medicina, estava-se em plena reforma do ensino. Já no Liceu se falava de Veiga Simão, eu fui como muitos outros, ia aderindo às manifestações convencida que estava a participar de um momento histórico único.
Nessa altura estava embrenhada na política, a Universidade de Coimbra, mais uma vez, encabeçava a tradição, havia inúmeras assembleias magnas, ia-se a Lisboa protestar. Na altura, já era grande o número de raparigas na população estudantil universitária. A maioria vinha das classes pequena e média burguesas. No entanto, em Biologia Médica eu pertencia a uma turma em que era o único elemento feminino. Inscrevi-me no teatro académico, vendia autocolantes aos colegas de Direito, os Partidos eram inimigos feudais, mas eles compravam-me tudo, deviam achar graça. Os de Direito eram maioritariamente MRPP'S, eu era da UEC. Só me recordo destes tempos como uma época em que nada de importante se registou na minha vida, mas deixou saudades, era muito nova e inconsequente. Nunca percebi porque cedi à vontade da minha Mãe em seguir Medicina. Se tivesse sido mais firme era Letras o meu destino. Depois de casar abandonei Medicina…Tinha boas notas, mas confundia o coração com os rins e era uma trapalhada. Foi bom ter desistido porque sublimava esta profissão e é errado sublimar-se qualquer profissão.


TRAJECTOS E (DES)ENCONTROS


Quando frequentava o liceu dizia sempre que gostava de ser professora de línguas. O Francês era o meu objectivo, a seguir descobri o encanto da língua inglesa, tive bons professores nesta disciplina.
As primeiras palavras em francês aprendi-as com a minha Mãe, depois veio a “Alliance Française”, são apoios que não se esquecem. Mas os livros foram sempre prendas do meu Pai, ambos gostavam de ler. Nunca tive diminutivos, os meus Pais sempre me chamaram Maria Isabel, houve só uma excepção, foi quando nasci, andavam a ler Guerra e Paz e uma das personagens fez com que, na altura. me chamassem Nabiuska. Recordo bem as imagens dos livros, das palavras e frases que identificavam ambientes, foi assim que me comecei a interessar pelo design, pela decoração. Depois, veio, para ficar, esse encanto de que falava sobre a língua inglesa. Primeiro, tive uma professora muito novinha, chamada Clara, que nos cantava canções tradicionais inglesas e irlandesas, oferecia-nos postais ilustrados, não sei se o acaso faz parte e influencia o futuro, mas o certo é que a mim me oferecia sempre postais a ilustrar obras de pintores, entre os quais a impressionista americana Mary Cassatt.
Mais tarde licenciei-me em Artes Plásticas, o mais impressionante foi ter acabado por fazer o mestrado em Estudos Anglo-Americanos, na área de Literatura Americana. Coincidências? Não creio, o meu trajecto de vida tem demonstrado ligações muito intensas com o meu passado e reparo nos muitos entrecruzamentos profissionais, no modo como me posiciono na vida...no rigor, na postura exigente, na entrega total àquilo que faço. Se quiser mencionar apenas um dos professores de inglês que fazia tremer o liceu, então posso afirmar que a ele muito devo. Hoje, este professor estaria deslocado na escola, quem perde são sempre os alunos, nunca um professor exigente...não vale a pena falar de consciência, pois não? Por vezes sou irónica, é o meu lado aguerrido! Nunca tive um bom professor de Português, lembro-me de uma professora mole e não gostava dela, nada me transmitiu. Se não fosse ter memorizado Os Lusíadas, Frei Luís de Sousa, ou ter lido o Padre António Vieira, Gil Vicente e outros era agora um espírito embrutecido…
Do ponto de vista profissional, já que emprego não tenho, projectos não me faltam, nunca penso que poderei morrer amanhã e lá ficam esses projectos...onde? Nem eu sei, comigo não os levo. Vou fazendo, o que interessa é apaixonar-me constantemente e eu apaixono-me por aquilo que faço. Não sei explicar, mas a escrita sai-me, jorram as ideias, de algum lado virão, basta um movimento, algo que me induz a uma escrita fluente. Antes não tivesse isto, antes não tivesse.
Quando acontece, não preciso de comer ou dormir, as palavras alimentam-me, amparam-me. Só estou bem quando investigo e quando descubro outros olhares sobre um tema. Gosto do caos dos livros e dos papéis, é febril, quase choro nessas alturas, transcende-me. Fora da escrita estou morta, num limbo. Gosto de partilhar, é um acto de amor, por isso sou muito zelosa das minhas ideias, nascem de dentro de mim, pertencem-me por inteiro, eu pertenço-lhes já sem razão. É assim, que hei-de dizer? Talvez seja o que ouvi dizer de si mesmo, a um amigo, António Pais: "a inocência de um escritor-menino"!


RUBEN A. E O ENCONTRO DEFINITIVO


Foi quando resolvi fazer uma Pós-graduação em Dinâmicas de Bens-Culturais, na FLUP, que me encontrei comigo e com a escrita. Precisava de um tema para o projecto e falei com a minha orientadora, Drª Leonor Soares. Como o Jardim Botânico do Porto fica perto de minha casa, falei-lhe em estabelecer uma ligação histórico-cultural entre este espaço e o do Museu Soares dos Reis. Nem eu sabia exactamente como se desenrolaria esta ideia. Providencialmente, a minha orientadora sugeriu-me um nome: Ruben A.. Fui logo à net e descobri uma tese de mestrado da Drª Dália Dias sobre o romance deste escritor, O Caranguejo. Fiquei imediatamente fascinada. Já tinha lido As Ondas de Virginia Woolf e percebi logo os entrelaçamentos entre estas duas obras, assim como um filão que me levou ao tempo das sensações em Proust...mas, Ruben A. levou-me muito mais longe, até Pascal, o que em termos de cultura europeia me ajudou, posteriormente, no mestrado.
Por exemplo, em Cultura Inglesa, com a Professora Fátima Vieira, e a propósito das teorias sobre a Utopia e, sobretudo, a utopia literária, o nome de Pascal surgiu, pois a sua obra é fragmentada, tal como é a Bíblia...tudo se centra no tempo, no processo de leitura de obras que podem ser lidas independentemente da cronologia. No fundo são espaços que retêm o tempo, mas se mantêm abertos, são comparados aos Templos, há uma relação directa entre exterior e interior, uma comunicação entre o tempo profano e o tempo sagrado...mas já Ticiano representara esta simultaneidade de intimidade e ruptura, com O Amor Sagrado e o Amor Profano.
O Caranguejo não é paginado, pode ler-se da frente para trás e de trás para a frente...claro, tudo isto caíu mal nos meios mesquinhos portugueses, até Salazar ironizou. E Ruben A. sofreu bastante com estes burburinhos maldosos, nada que não conheçamos...já no século XVIII, os italianos diziam isso dos portugueses, a mesquinhez sempre fez parte dos "genes" que transportamos, é o país que fica a perder, é o país que temos ainda. E foi assim mesmo, o projecto começou a ganhar forma e os nomes começaram a surgir, António Dacosta, Barbara Hepworth, Teixeira Lopes, o escultor, tudo nomes que faziam parte dos conhecimentos da família Andresen. Claro, também Sophia de Mello Breyner, prima do Ruben, assim como a pintora Menês. Eu cheguei a pensar:" este homem vai levar-me aos primórdios da criação".
De tal forma era labiríntica esta teia em construção que, depois de lida toda a obra de Ruben A., fiquei logo com o "bichinho" da literatura e, principalmente, da inglesa, encantada que fiquei ao conhecer T. S. Eliot, com quem Ruben A. travou conhecimento. Foi, como se de repente, aquilo que eu tinha sonhado para mim, aos 12 anos, estivesse finalmente a realizar-se. Não era a Faculdade Letras o meu destino inicial? Ali estava eu...não foi logo, mas a altura certa, talvez. Há um tempo para tudo, há que respeitá-lo.


O JARDIM DA MEMÓRIA E A IDENTIDADE


O projecto que desenvolvi nesta Pós-graduação teve um ponto de partida conceptual e ideológico, quer através do confronto entre o pensamento rubeniano e malruciano, quer na influência das Pensées de Pascal na formação do seu pensamento. E depois de ter encontrado uma alusão de António Quadros à obra "auto-biográfica" de Ruben A., em que existe um ponto de contacto com as Antimemórias de Malraux, O Mundo à Minha Procura foi a minha fonte inspiradora. O projecto começou a tomar forma no sentido de o impregnar do espírito intimista, que tem toda a legitimidade de ser, quando se quer transformar um lugar heterotópico, como é um jardim, num lugar de virtualidades e é por essa razão que eu ainda penso nele, porque se mantém actual. E foi muito estimulante ter criado as tensões necessárias a um projecto que, no caso, incidiram no conflito entre a transcendência e a angústia existencial.
Também me entusiasmou ter chegado à conclusão de que seria mais eficaz se partisse do objecto para o sujeito e dos referentes para a fonte, como se decalcasse o gosto de Ruben A. em subir rios. Um movimento de ascensão que se coadunasse com a procura da origem das coisas, desse lado inquieto do escritor...É curioso, na Faculdade de Letras encontrei sempre Professores abertos e receptivos às minhas ideias, eu era uma "outsider"...no fundo, este projecto contempla, quer o aspecto cultural, quer o educativo. Alguns "leimotiv" que encontrei na obra de Ruben A. começaram a impregnar, espontâneamente, o projecto, como o SILÊNCIO, o NÃO-TEMPO, a FANTASIA, o SURREAL. É um projecto de celebração da vida, em que o neobarroquismo manifesta algumas das características do pós-modernismo. A extravagância e, simultâneamente, a ortodoxia delineada num modelo racional, com um formato mais poético das coisas, porque sem ele caía no risco de transformar o projecto num objecto de consumo rápido. Por isso, chego mesmo a pensar que realizei uma metanarrativa do avesso, não em termos literários, mas com os mesmos contornos. Se libertasse o projecto de parâmetros científicos volatilizava-o. Os lugares existem, as personagens são reais, misturadas, é claro, com personagens de ficção, como o bobo Bórbola, do romance de Ruben A., A Torre da Barbela.
É um projecto em aberto, um labirinto virtual que sorve toda a informação possível. O meu objectivo era contemplar novos sentidos de vida, aliar à vida, a arte, sem esquecer as instâncias estética e histórica. No projecto está bem sublinhada a ideia de identidade, uma preocupação em vencer o tempo. A utopia exige acção e a ideia de não-lugar desvirtuou-se na sociedade contemporânea. Os espaços públicos já não são os jardins, mas os grandes centros comerciais, as pessoas abandonaram as cidades, vivem praticamente na periferia, a cidade é um lugar sem vida, um documento abandonado. A verdade é que não há qualidade de vida, o que existem são modelos de gestão dos espaços, em que se fornecem falsas necessidades às pessoas, é uma relação desumanizada baseada apenas no consumismo. Isto é como remar contra a maré, é um projecto muito bonito para ficar na gaveta, quem se interessa por mudar seja o que for? Já não é o sonho que comanda a vida, acabaram-se os fazedores de sonhos.


LUGARES DE OPORTUNIDADES, OU DE EXPECTATIVAS?


Na Faculdade de Letras tive professores muito diferentes daqueles a que eu estava habituada. Tinha convivido com artistas, na sua maioria. O mundo é outro. É um mundo, onde se realizam sonhos, onde se produzem ideias, também é um mundo de expectativas. Entra-se com vontade de se fazer coisas novas, de experimentar. Mas a incursão neste mundo não é nada fácil, não é chegar e imitar o Pollock, atirar tinta simplesmente. Chega-se com muitas ideias falsas, com uma visão muito sublimada da arte. Encontrei logo um Professor de Desenho que se encarregou de limpar as ideias pré-concebidas. Sabia que o Pintor Sá Nogueira era um nome importante das Artes Plásticas, mas foi uma surpresa, convivia connosco, quer como professor, quer como amigo. Íamos jantar com ele e com outros, o Escultor José Rodrigues, o Pintor Henrique Silva, e com os de outra geração, mais novos, o Augusto Canedo, Filipe Rocha da Silva...Tive esse privilégio de apanhar duas gerações diferentes, isso é bom, as vivências são diferentes e enriquece um aluno que chega cheio de energia e entusiasmo. Com o Henrique Silva abriu-se outra porta, as oficinas e as técnicas tradicionais de reprodução. Estas recordações trazem muitas saudades, eles eram marcantes. Não eram meros professores que se limitavam a debitar, ou a despejar informação, não, nada disso, eles abriam portas para outros mundos e sabiam fazê-lo.
Nesse tempo não se aplicavam pedagogias, eram eles a pedagogia viva. Depois, no último ano de licenciatura, tive em Teoria e Crítica da Arte, o poeta Ernesto Mello e Castro. Foi, então, que convivi mais de perto com o mundo da escrita...geralmente retenho nomes e há nomes que parecem chamar-me, não sei como, mas quando o ouvi falar de Ezra Pound suscitou-me logo interesse pela poesia imagista. Já o tinha lido, mas muita gente lê, outra coisa é ler no sentido analítico.
E eu sabia lá que anos mais tarde iria cruzar-me, de novo, com Ezra Pound e com a Literatura Inglesa e Americana? Resumindo, a Pós-graduação foi um bom intermediário entre as Artes Plásticas e a Literatura. Pensei que iria viver da Pintura, mas não aconteceu, participei em algumas exposições e na realização de um mural em mosaico, na Bienal de Cerveira, também, e resolvi enveredar, tardiamente, pela Literatura.
Foi este o meu percurso, às arrecuas, para enganar o tempo! É sempre o tempo que me traz e leva, são os acasos da vida. Um dia estava sentada num corredor da Faculdade à espera da minha orientadora, Drª Leonor Soares, e para passar o tempo peguei nuns papéis esquecidos sobre o banco. Era um texto de literatura inglesa e sobre a importância da fotografia em Virginia Woolf. Copiei-o todo à mão, sou assim, em vez de o fotocopiar, entreti-me manualmente. Tinha abandonado as minhas expectativas, mas estava agora a ter oportunidades únicas, entrar pela porta grande das Humanidades. É aí que me revejo.
A seguir à Pós-graduação entrei para o mestrado em História de Arte em Portugal, não sei bem como aconteceu, dei meia-volta e candidatei-me ao mestrado em Estudos Anglo-Americanos. Tive de ser entrevistada, não pertencia ao meio, vinha de Artes Plásticas, mas era já considerada aluna da FLUP. Quem me fez a entrevista foram o Professor Gualter Cunha e o Professor Carlos Azevedo. Nem sabia qual deles era de Literatura Inglesa, disse logo que a Literatura Americana não era o meu objectivo, antes não o dissesse. Foi nessa área que concluí o mestrado. Só para rir, foi paixão imediata nas primeiras aulas, não há nada a fazer, para mim a Literatura Americana é fascinante. Tive o privilégio de ouvir a Professora Ana Luísa Amaral dizer que eu tinha uma escrita fresca, que escrevia muito bem, não é um bom elogio vindo de uma grande poetisa contemporânea?
Gostaria de viver os anos que me restam só dedicada à investigação na área, sei que é praticamente impossível. Avanço para o doutoramento, mas só por amor à literatura, só por isso. Acabei por me encontrar num lugar de oportunidades, a FLUP. Lá as oportunidades não são sinónimo de concretização de sonhos, mas de abertura ao conhecimento, o resto depende da escolha que cada um faz na sua vida, hoje em dia as pessoas só pensam em sucesso imediato e a todo o custo, não pensam em termos de cumprir uma missão.



PRINCÍPIO, MEIO E FIM


O Mapa da Memória que criei é um documento muito simples de ingressão na identidade individual e na identidade colectiva. É direccionado e tem uma missão, a de representar tematicamente interacções ao nível dos programas escolares.
É preciso ter muito cuidado quando se lançam os alunos em experiências sem "rede". O excesso de informação, se não for bem conduzido, torna-se em desaprendizagem e ameaça a criatividade. A Interdisciplinaridade requer conhecimentos bem aprofundados e com uma sólida formação académica, mas não chega, é preciso saber como relacionar, como "garimpar" nas redes de informação. Costuma-se dizer, aquela pessoa tem olho, o meu olho treinado foi uma mais-valia, basta-me olhar para isolar palavras, para encontrar ligações felizes, mas a verificação científica é necessária. A verdade é esta, os alunos que entram no ensino superior vêm em estado bruto, estou a falar de uma grande parte, limitam-se a sorver informação e a despejá-la.
O pior de tudo é que nem memorizam, ora sabemos muito bem que a memória cose nas tessituras do esquecimento imagens, sons e cheiros, impressões que permanecem, sinestesias que fazem despertar os sentidos. Nas redes de informação tudo é volátil. Esse é o maior perigo.
No Mapa da Memória há uma construção simples, mas em profundidade, há uma dinâmica implícita e convida à contextualização cultural. Ao ter reconstruído a memória de um lugar, como o fiz com o Jardim Botânico do Porto, libertei-o de um sentido institucional, mas inseri-o numa triangulação...Palácio de Cristal e Museu Soares dos Reis...A figura do triângulo não surgiu por acaso, mas por ter investigado em profundidade... não me limitei a recolher informação, cada ponte lançada por Ruben A. foi bem analisada, se assim não fosse nem faria qualquer sentido, o triângulo é uma figura que representa o mundo do escritor que viveu na casa do Jardim Botânico.
Por exemplo, conservação da natureza, parceria entre espaços museológicos, inserção da pessoa na sociedade, isto é uma triangulação possível das identidades, individual e colectiva. Realmente não sou uma pessoa que me disponha ao trabalho de grupo, as minhas ideias são próprias e a minha autonomia levaram-me a fazer um percurso pouco visível e muito solitário, só me interessa o aspecto mais profundo das coisas e depois acabou. O resto é com os outros, não imponho nada... sei que não deve ser fácil entender esta posição, por isso me considero sempre uma marginal.
Se a memória não é algo de abstracto por ser feita de objectos, de bens culturais que são os testemunhos da actividade humana, não se compreende como a realidade das escolas seja um autêntico caos, algo está mal. A potencialidade criativa perde-se na confusão do experimentalismo, na contradição de teorias sobre a educação. O que acontece é haver falta de reflexão. De nada servem as teorias se não se criam condições para ambientes de serenidade e concentração, tudo isto envolve a sociedade, começando com as famílias.
O Professor não tem uma varinha de condão, é uma pessoa e tem as suas fragilidades, hoje é tratado como se fosse um objecto que se manipula e a quem se atribuem super-poderes. O Mapa da Memória tem essa finalidade, sensibilizar a família e a escola para incrementar hábitos de valorização da memória. Cada um de nós transporta uma memória e essa memória não é uma ilha, pelo contrário, move-se nas fronteiras culturais, geracionais, até na dos afectos, mas os afectos não começam na escola, nem a responsabilização dos alunos se decreta, tudo tem a ver com o modo como se conduz o processo de crescimento total da pessoa e isso faz-se em casa. Os Pais deviam ser responsabilizados e nunca o são.


TEMAS AFINS E FINAIS EM ABERTO


Quando concluí o mestrado, as minhas ideias tinham ficado em suspensão, esperei 9 meses para me surgir um possível tema, em vista ao doutoramento. Foi o tempo certo, espero agora que se faça luz!...outra coincidência, mais uma, acabei por ir ter a T. S. Eliot e Ralph Ellison, de novo. A minha tese de mestrado foi sobre o romance deste escritor afro-americano, Invisible Man, sobre o problema da invisibilidade dos afro americanos, do melting pot americano. Identifiquei-me com o tema. Não estava nos meus planos voltar a ele, mas acho que o círculo começa a fechar-se e isso significa que nada ficou definitivamente para trás, pelo contrário, se insiste em voltar é porque eu devo procurar melhor algo que é importante. O fenómeno sociológico impôs-se...encontrei na bibliografia da minha própria tese um autor, e nesse autor a ligação à filosofia das religiões. Acho que fico por aqui, nunca se revelam os segredos. Mas esta descoberta já tinha as suas sementes lançadas à terra antes do mestrado e pelas mãos da Arquitecta Teresa Andresen num seminário de Território, Património e Cultura. Os meus Pais nunca foram de devoções, preferiam aprofundar os conhecimentos da religião, principalmente o meu Pai, gostava de ler teologia, era muito amigo de um teólogo, frade dos Capuchinhos. Senti na minha educação um bom equilíbrio entre o poder patriarcal e o mundo feminino. Compreendo e movo-me bem nestes dois espaços. Gosto da minha feminilidade, assumo-me mulher fora de qualquer padrão, sou eu mesma sem o sentimento de castração do meu eu.



ENTREVISTA:

1ª pergunta:
Como decorreu a tua infância e de que modo ela te marcou?

2ª pergunta:
Agora tens alguma percepção sobre o modo de educar desses tempos?

3ª pergunta:

Pertences a uma geração que participou na viragem política em Portugal, em que medida isso influenciou a tua vida e as oportunidades de realização pessoal?

4ª pergunta:

Falaste muito da importância de ler, da importância da palavra, desde muito criança. Alguma vez te sentiste dividida na escolha de uma carreira? Quem influenciou o teu percurso?

5ª pergunta

Quem foi a pessoa que mais te marcou no decorrer dessa tua insatisfação permanente?

6ª pergunta:

Ao desenhares um mapa, a partir de um lugar real, pensaste em termos de projecção de uma ideia, ou em termos de missão?

7ª pergunta:

Como encaras a mudança das Artes Plásticas para a Literatura?

8ª pergunta:

E agora pensas que vale a pena continuar por esse caminho?

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