MARTINHO OFREDUCCIO:O GATO POETA

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sábado, 19 de setembro de 2009

O LUGAR DA OMNISCIÊNCIA

"St. Augustin described the nature of God as a circle whose centre was everywhere and its circumference nowhere.” (EMERSON: 279)




No centro está a virtude._nas margens, o fogo do pensamento._ nos becos, o princípio das margens._no princípio, o fio da solidão, em reverberação do tempo primordial!




Dito por um gato-poeta de nome Martinho Ofreduccio, séc xx

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

TALVEZ





Talvez, foi tudo quanto ouvi,
Talvez seja este o momento,
Talvez ela venha aqui
Talvez, no seu passo lento...

Eu e Ela, o melro e a pena,
Em melodia suave de dança,
Brotaremos, sem pressa,
Num círculo de esperança.

E depois, quem sabe,
talvez,
no incêndio do mar,
a palavra
seja o rumor de nós
E se transforme,
reluzente,
em voz...ou no rubor
estilhaçado da tarde.

***

(Martinho, gato-poeta do séc. xx)

***

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Canto a pedra e as amoras





Falei com elas e olhei–as ,
são amoras,
encobertas pelas silvas.
Quase negras,
estas palavras cantam
e enfeitam a secura dos caminhos.
Falei com elas e olhei–as
na semelhança que têm com a pedra:

(De onde vêm ? )


Martinho Ofreduccio, gato-poeta do séc. xx

.-.

domingo, 23 de agosto de 2009

EU, ELA E A PENA









Um restolho liso
de folhagem
irrompe no final de tarde
ouço-o
no bater compassado
de mil corações
em uníssono.


Pom pom Pom pom


POM
corre, corre!


“vai Ela descalça pela verdura, vou eu e esta pena pelas alturas,
vem connosco um figo-de-mel, um beijo a perfumar o céu,
Ela, Eu e o arroz-doce na lonjura de um movimento…
O dia como que se ausenta na esquadria dourada do tempo”

por que a noite não cai
e a terra húmida já perfuma as sombras
rendilhadas na quietude do silêncio
-cai a tarde e a noite não tarda.

“Eu, Ela e a pena em sonhos de poeira fina
fomos luz de uma fantasia, restolho fomos, não fomos?"

-restolho liso? disse Ela
"-como o reflexo estendido sobre o rio,
assim
_ fui eu.”
Martinho Ofreduccio, (gato-poeta do séc.xx)
***

sexta-feira, 31 de julho de 2009

A MULHER NEGRA AMERICANA: PILAR DE UMA CULTURA MENOR?

THE DEEP SOUTH




THE SOUL OF THE NIGGER
Obrigada :))

Odetta sings "Glory Halleluja" at Garrison Institute event:


VÍDEO

Zora Neale Hurston is considered one of the pre-eminent writers of twentieth-century African American literature. Hurston was closely associated with the Harlem Renaissance and has influenced such writers as Ralph Ellison, Toni Morrison, Gayle Jones, Alice Walker, and Toni Cade Bambara.
In 1975, Ms. Magazine published Alice Walker's essay, "In Search of Zora Neale Hurston" reviving interest in the author. Hurston's four novels and two books of folklore resulted from extensive anthropological research and have proven invaluable sources on the oral cultures of African America.
Through her writings, Robert Hemenway wrote in The Harlem Renaissance Remembered, Hurston "helped to remind the Renaissance--especially its more bourgeois members--of the richness in the racial heritage."

quarta-feira, 29 de julho de 2009





O som das fontes já se ouve ao longe _L_I_S_O_
Assim,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,É
o mundo
na circularidade traçada
sem fim ou princípi o



Eu, o melro e ela



,ali, onde a fonte se cala.


Eu escutava a nuvem
que se ergue
altiva na tarde íntima
e se dilui
em sílabas de sal.



Eras, então, miragem:


como quem fixa
no verde da erva
o coração e
sobre o peito enche
a taça vazia de juras

_Eu juro_dizias

nas veredas do caminho
escrevias em branco e_sem medo_

ele ouvia mudo
com a inocência das suas penas.

_Eu juro_que por este rio

hei-de descer ainda
até lhe sentir o sal
queimar o âmago da luz.

Ali, onde a nuvem

_que já não somos_

nos disser o mesmo dizer

dos cânticos descidos

das fontes e, sob a tenda,

a noite_no seu embalar azul_

descer do seu pedestal.


Éramos acrobatas sem chão

para que outros fossem

o chão raso, onde brotam

os rebentos alegres e verdes


r_a_s_t_e_j_a_n_t_e_s
na sombra húmida,
em direcção à chama do braseiro,
sem a qual, o silêncio
não dorme
ou as pétalas exultam
a glória do beijo dado
sobre o leito iridescente
de estrelas em botão.

Eu floresci no início de Janeiro,
tão jovem ainda
e tão chegado a Ela,

_Parti.


Martinho Ofreduccio (gato-poeta do século XX)

domingo, 19 de julho de 2009

DOIS GATOS, DUAS ÉPOCAS: PRÉ-VISÕES

Ralph Ellison Luís

Este não é um gato instruído, abandonou a escola muito jovem, o tédio consome-o.
Este não encontrou na escola resposta para as suas aptidões naturais: é um exemplo do insucesso escolar, uma vítima do sistema.


Poc, poc, poc,
Quem vem aí? poc, poc, poc posi posi
posi o quê?
Desembucha
Pusilânime! Sou eu
Quando a palavra turva
os sentidos ficam em suspensão.
(Dito por uma gato instruído
de nome Martinho)
Martinho Ofreduccio nasceu no século XX

sexta-feira, 17 de julho de 2009

ENTREVISTADA POR UMA AMIGA

Isabel Monteverde nasceu em Viana do Castelo, junto às margens do rio Lima, conhecido por rio Lethes, ou rio do esquecimento.
A conversa foi realizada em sua casa, durante uma tarde, no Porto, no dia 26 de Abril de 2009. Dadas as circunstâncias de tempo e a natureza coloquial da entrevista terem sido factores a considerar neste trabalho, ponderei uma análise sucinta, tendo por finalidade ressalvar o conteúdo da entrevista e a ele dar uma forma visível da invisibilidade com que se reveste a sua vida.

***
EM VERDES ANOS À DESCOBERTA DO MUNDO

A questão que me coloco frequentemente é a de saber o que representa o tempo psicológico na minha vida, pois sei ser nele que me devo concentrar. Uma das razões para questionar a minha posição numa dimensão interior prende-se com a curiosidade sobre a própria vida. Sei muito bem que tenho um pensamento abstracto e que isso é, por vezes, mal compreendido, sobretudo em situações concretas, vejamos, por exemplo, em relação à minha incursão no ensino secundário, como professora. Não era aquele lugar que me pertencia. E não é uma arrogância minha, apenas a constatação de não ser, profissionalmente, uma professora que gostasse de conviver com os alunos dessa faixa etária, embora gostasse deles e principalmente dos "apelidados" deficientes.
Nunca pensei em termos de me culpabilizar por este sentimento, conheço-me suficientemente bem para saber que a desvalorização da carreira de docente teve muita influência na minha decisão de abandonar o ensino e é curioso que eu adore escrever para crianças...contar-lhes histórias, inventar lenga-lengas, divertir-me a versejar palavras que me fizeram sonhar quando era criança...enfim, serei eu uma eterna criança?
Recordo a minha infância, os contos que me liam à noite, depois o gosto pela leitura, penso que este gosto surgiu antes da minha paixão pela pintura, muito antes...
Entrei para um jardim-escola aos 4 anos e não gostei. Depois do primeiro dia, os meus Pais não insistiram e fizeram bem, tiveram a sensatez de verificar que eu pedia mais. No ano seguinte entrei para o colégio, onde estive, como aluna externa, durante 7 anos e aí senti-me sempre bem. Nem os momentos de medo, quando as freiras batiam em algumas colegas, me causaram danos. Tudo isso fez parte do crescimento. No colégio não havia qualquer forma de competição agressiva...estou agora a recordar-me de momentos deliciosos, quando na 2ª classe, a Irmã Maria da Paz nos presenteava com mimos, era uma boa pedagoga. Por exemplo, sempre que tínhamos zero erros nas redacções, dispensava-nos da aula para passearmos pelos claustros, com um livro na mão.
A leitura passou, então, a ser associada a tardes felizes e de reflexão. Mas já antes as freiras tinham feito um reparo à minha Mãe, dizendo que eu aprendia facilmente, mas ficava muito tempo a olhar pela janela, perdida no olhar. Eu rio-me porque sei exactamente o que me puxava para esse lado exterior da vida...pensava muito na distância e isso intrigava-me. Ainda hoje olho para os contrafortes do edifício, ao lado da Igreja, e recordo que era através deles que o meu olhar interior divagava, o que estaria para lá desses muros de pedra? O mar? E o mar onde acabaria? E o mundo teria um fim? Essa distância inexorável entre o meu ser e o mundo já fazia parte de mim.
E o tempo voava e por isso creio que o meu percurso teve a ver com estes primeiros anos...não é por acaso que ao descobrir os românticos, principalmente, John Ruskin, tenha compreendido tão bem o significado das pedras, da memória e do tempo que passa...
Pois, é-me tão fácil recuar e avançar no tempo, associar tudo, estabelecer pontes de ligação, fazer da minha própria vida um poema...agora, de repente lembrei-me do medo...devia ter 6-7 anos, quando nas férias de Natal fui ao colégio e encontrei a Irmã Maria da Paz. Andava há semanas com um dente pendurado e ninguém me convencia a dar-lhe um puxão, o certo é que esta freira conseguiu e eu livrei-me do dente de leite. Primeiro, elogiou-me a roupa, disse-me que estava muito bonita, depois perguntou-me o que tinha na boca e eu abri-a inocentemente...zás, a mão dela foi rápida! O dente saíu com facilidade. Claro, quando cheguei a casa a minha Mãe desatou a rir, como quando eu caía nas escadas, sempre foi jovial, contrariamente ao meu Pai, que me pedia para eu andar no baloiço só quando ele estivesse presente.
Foi uma medida certa de bom senso, pois sou muito cautelosa e ao mesmo tempo muito jovial...e como recordo com ternura os passeios com o meu Pai pelo jardim, os jogos de esconde-esconde: "Pai agarra a menina!", o bolo gema na pastelaria no regresso a casa. Isto é saber educar, eu reconheço nos meus Pais essa capacidade. Ternura, respeito, incentivar a imaginação, impôr disciplina, regras e limites, inculcar o sentimento de prazer e curiosidade que os livros proporcionam...
Por exemplo, quando ia de carro com o meu Pai, eu lia todas as terrinhas por onde passávamos, aos 6 anos já lia perfeitamente...lembrei-me de um poema, "O cantarinho de barro", como sorriam os meus Pais ao verem-me a declamar...mas, voltando atrás, estava a falar do processo de incentivo natural à aprendizagem, o meu Pai contava sempre à minha Mãe e muito feliz que eu tinha lido com correcção os nomes das terrinhas...a minha Mãe sorria. Tal como o faz ainda agora quando diz que saio ao meu Pai, que tanto gostava de ler e escrever, era colaborador num jornal regional, logo após o 25 de Abril foi um dos fundadores de outro jornal, além da biblioteca dos Estaleiros de Viana que criou. Bem, o Avô paterno do meu Pai era um bom bibliómano, tinha uma grande biblioteca pessoal, que ardeu um dia quando o meu Avô era pequeno. Estava junto a uma vela e a brincar derrubou-a, resultado, as barbas desse meu bisavô arderam. Alguns livros foram-se no incêndio.
Nas tardes de Verão, quando chovia, ficávamos em casa. Naquela altura, a casa dos meus Avós maternos enchia-se de gente, tios que vinham de férias, primos, amigos. A mesa estava sempre posta e no aparador empilhavam-se travessas e pratos brancos com uns delicados arabescos onde nasciam rosas. A sala de jantar era o lugar de permanência e passagem, os tios que entravam e saíam, o meu Avô que subia e descia as escadas do sótão, onde se entretinha a fazer talha de madeira. E nessas tardes, a minha Madrinha inventava jogos, inventava temas para escrevermos histórias. Nunca os temas foram sobre a vaquinha, o barquinho, tudo em “inho”, como se aprendia na escola. Recordo-me de um tema que adorei, A Caneta…
Como recordo com ternura os passeios com o meu Pai pelo jardim…
Sempre fui autónoma, em muitas coisas. Aos quatro anos sabia cuidar de mim, sabia vestir-me e calçar-me. Na praia, depois do banho enxugava-me sozinha, nunca quis que mo fizessem. Era muito brincalhona e palradora, mas depois do banho afastava-me, estendia a toalha na areia e tirava da mochila vermelha o pão com mel. Perdia-me a olhar o horizonte.

Ainda não há muito tempo o meu irmão me disse que eu tinha sido muito mimada, talvez, apesar de, dadas as circunstâncias, o meu irmão ter tido muita atenção dos meus Pais. Não é fácil, nem o foi naquele tempo, ter um filho hemofílico. Não havia tratamento adequado, mas o que mais preocupava os meus Pais era o futuro dele, a preocupação nos estudos, até onde ele poderia chegar? A primeira meta era completar o 5º ano, que corresponde agora ao 9º. Depois desta meta cumprida, o meu irmão prosseguiu e fez duas licenciaturas, em Física Teórica e em Astrofísica, duas pós-graduações, um mestrado em Matemática Aplicada.
A minha experiência no que respeita à forma como se educa diz-me tudo isto... Sim, penso que dentro dos nossos limites, e da fragilidade do nosso corpo, podemos vencer o tempo, o que quero dizer é ultrapassar barreiras no sentido da acção, contrariamente à inércia, ao ponto zero que por si é já potencialidade, é desafio, desde o início dos tempos. E é nesse ponto que tudo nasce...de que me serviria ter ingressado numa área que não era a minha, a Literatura, se não conhecesse bem a Bíblia, se não tivesse lido Stº Agostinho, Stª Teresa d'Ávila, S. João da Cruz? Bom, para mim foi essencial tê-los lido, quer as obras dos poetas, escritores, músicos, quer as dos pintores, têm toda uma tradição baseada na cultura europeia...Antiguidade Clássica e Cristianismo. E é entre estas duas tensões que o tempo ganha forma, o tempo cíclico das estações e o tempo escatológico.
Mas, o que é feito da História, o que fizeram à Filosofia nas escolas? É impossível alguém compreender qualquer cultura exterior à nossa se nem essa conhecemos, se nem a nossa Língua respeitamos. Eu não estou a ser radical, de forma alguma...a propósito, muito mais radical é o crítico americano, Harold Bloom...não sei se ele é avesso totalmente às novas ferramentas conceptuais, eu não sou, gosto de ir navegando, tenho dois Blogues.
As datas não são significativas senão para a História, na vida de uma pessoa elas nem deviam existir, travam o processo da acção, alienam. Elas não me pertencem, confundo-me com o tempo, por isso gosto de “garimpar” nas redes, é um mundo que foge a qualquer percepção do real, as pessoas são virtuais, mas são reais, é estranho este mundo, deixa-nos perplexos, criam-se afinidades e amizades profundas.
Interessa-me, claro, esse aspecto da tela, porque isto é uma tela, sem profundidade, como diz Bloom...E é um círculo em labirinto, volto de novo à questão do tempo.
O que pensa um professor do ensino básico e secundário relativamente a todas estas solicitações, administrativas, informáticas, será que a sua "performance", tal como ainda outro dia li numa publicação, terá limites? Até onde poderemos ir nesta sociedade, onde a superficialidade da tela de um computador nos leva pelos caminhos da navegação?
Julgo que há tanto em que pensar e hoje não se pensa, é o "ir" apenas, às vezes sem rumo, sem a profundidade do pensamento. As escolas foram invadidas por uma substituição perigosa do saber. Não é preciso grandes exemplos, as pessoas vão de férias e conhecem lugares, mas na volta pouco mais sabem, estou a falar de uma maioria. A realização do ser humano está em ir aprendendo.


A MUDANÇA EM PORTUGAL


A viragem no tempo foi alucinante e em Portugal, com o 25 de Abril, as classes menos favorecidas ascenderam economicamente, mas o nível de semi-analfabetismo acentuou-se...no 25 de Abril eu estava a frequentar o 7º ano, corresponde ao 11º, não é?...Fiz o serviço cívico, havia uma grande confusão, na altura, havia o sonho, a utopia...entretanto, os governos sucessivos não souberam investir na educação, na cultura, criaram distopias autênticas.
Generalizaram-se as pedagogias, ao mesmo tempo, sabemos bem que o aspecto economicista imperou em vários sectores da sociedade. A Escola tornou-se uma arma política...mas, voltando atrás, eu falava desta coisa da electricidade, daquilo que MacLuhan defende como Filosofia dos media, o medium frio. A modernidade pertence ao medium quente. O homem moderno, a partir do Renascentismo, representava o mundo na sua linearidade, isto é uma concepção do tempo...o Pós-modernismo substituiu a ortodoxia da 1ª metade do século XX por uma síntese interpretativa que se reflectiu nos pedagogos. A criatividade passou a ser um lema, sem contemplação pelas formas do saber, isto também é uma concepção do tempo.
E é assim que os políticos fazem discursos demagógicos...muitos computadores, muito incentivo à criatividade, mas saberão do que falam? Também não interessa, quem os ouve é semi-analfabeto, eu desespero com esta situação triste, esta irresponsabilidade perante as futuras gerações...já cá não estou nessa altura, mas a minha paixão pela escrita não me deixa ficar muda. Quem se preocupa com estas questões preocupa-se com os outros.


UM EPISÓDIO SEM REGISTOS


Depois de ter feito o serviço cívico no Comando da Polícia de Viana e ter preparado alguns polícias para os exames do então ensino preparatório e ensino geral, entrei para a Faculdade de Medicina, estava-se em plena reforma do ensino. Já no Liceu se falava de Veiga Simão, eu fui como muitos outros, ia aderindo às manifestações convencida que estava a participar de um momento histórico único.
Nessa altura estava embrenhada na política, a Universidade de Coimbra, mais uma vez, encabeçava a tradição, havia inúmeras assembleias magnas, ia-se a Lisboa protestar. Na altura, já era grande o número de raparigas na população estudantil universitária. A maioria vinha das classes pequena e média burguesas. No entanto, em Biologia Médica eu pertencia a uma turma em que era o único elemento feminino. Inscrevi-me no teatro académico, vendia autocolantes aos colegas de Direito, os Partidos eram inimigos feudais, mas eles compravam-me tudo, deviam achar graça. Os de Direito eram maioritariamente MRPP'S, eu era da UEC. Só me recordo destes tempos como uma época em que nada de importante se registou na minha vida, mas deixou saudades, era muito nova e inconsequente. Nunca percebi porque cedi à vontade da minha Mãe em seguir Medicina. Se tivesse sido mais firme era Letras o meu destino. Depois de casar abandonei Medicina…Tinha boas notas, mas confundia o coração com os rins e era uma trapalhada. Foi bom ter desistido porque sublimava esta profissão e é errado sublimar-se qualquer profissão.


TRAJECTOS E (DES)ENCONTROS


Quando frequentava o liceu dizia sempre que gostava de ser professora de línguas. O Francês era o meu objectivo, a seguir descobri o encanto da língua inglesa, tive bons professores nesta disciplina.
As primeiras palavras em francês aprendi-as com a minha Mãe, depois veio a “Alliance Française”, são apoios que não se esquecem. Mas os livros foram sempre prendas do meu Pai, ambos gostavam de ler. Nunca tive diminutivos, os meus Pais sempre me chamaram Maria Isabel, houve só uma excepção, foi quando nasci, andavam a ler Guerra e Paz e uma das personagens fez com que, na altura. me chamassem Nabiuska. Recordo bem as imagens dos livros, das palavras e frases que identificavam ambientes, foi assim que me comecei a interessar pelo design, pela decoração. Depois, veio, para ficar, esse encanto de que falava sobre a língua inglesa. Primeiro, tive uma professora muito novinha, chamada Clara, que nos cantava canções tradicionais inglesas e irlandesas, oferecia-nos postais ilustrados, não sei se o acaso faz parte e influencia o futuro, mas o certo é que a mim me oferecia sempre postais a ilustrar obras de pintores, entre os quais a impressionista americana Mary Cassatt.
Mais tarde licenciei-me em Artes Plásticas, o mais impressionante foi ter acabado por fazer o mestrado em Estudos Anglo-Americanos, na área de Literatura Americana. Coincidências? Não creio, o meu trajecto de vida tem demonstrado ligações muito intensas com o meu passado e reparo nos muitos entrecruzamentos profissionais, no modo como me posiciono na vida...no rigor, na postura exigente, na entrega total àquilo que faço. Se quiser mencionar apenas um dos professores de inglês que fazia tremer o liceu, então posso afirmar que a ele muito devo. Hoje, este professor estaria deslocado na escola, quem perde são sempre os alunos, nunca um professor exigente...não vale a pena falar de consciência, pois não? Por vezes sou irónica, é o meu lado aguerrido! Nunca tive um bom professor de Português, lembro-me de uma professora mole e não gostava dela, nada me transmitiu. Se não fosse ter memorizado Os Lusíadas, Frei Luís de Sousa, ou ter lido o Padre António Vieira, Gil Vicente e outros era agora um espírito embrutecido…
Do ponto de vista profissional, já que emprego não tenho, projectos não me faltam, nunca penso que poderei morrer amanhã e lá ficam esses projectos...onde? Nem eu sei, comigo não os levo. Vou fazendo, o que interessa é apaixonar-me constantemente e eu apaixono-me por aquilo que faço. Não sei explicar, mas a escrita sai-me, jorram as ideias, de algum lado virão, basta um movimento, algo que me induz a uma escrita fluente. Antes não tivesse isto, antes não tivesse.
Quando acontece, não preciso de comer ou dormir, as palavras alimentam-me, amparam-me. Só estou bem quando investigo e quando descubro outros olhares sobre um tema. Gosto do caos dos livros e dos papéis, é febril, quase choro nessas alturas, transcende-me. Fora da escrita estou morta, num limbo. Gosto de partilhar, é um acto de amor, por isso sou muito zelosa das minhas ideias, nascem de dentro de mim, pertencem-me por inteiro, eu pertenço-lhes já sem razão. É assim, que hei-de dizer? Talvez seja o que ouvi dizer de si mesmo, a um amigo, António Pais: "a inocência de um escritor-menino"!


RUBEN A. E O ENCONTRO DEFINITIVO


Foi quando resolvi fazer uma Pós-graduação em Dinâmicas de Bens-Culturais, na FLUP, que me encontrei comigo e com a escrita. Precisava de um tema para o projecto e falei com a minha orientadora, Drª Leonor Soares. Como o Jardim Botânico do Porto fica perto de minha casa, falei-lhe em estabelecer uma ligação histórico-cultural entre este espaço e o do Museu Soares dos Reis. Nem eu sabia exactamente como se desenrolaria esta ideia. Providencialmente, a minha orientadora sugeriu-me um nome: Ruben A.. Fui logo à net e descobri uma tese de mestrado da Drª Dália Dias sobre o romance deste escritor, O Caranguejo. Fiquei imediatamente fascinada. Já tinha lido As Ondas de Virginia Woolf e percebi logo os entrelaçamentos entre estas duas obras, assim como um filão que me levou ao tempo das sensações em Proust...mas, Ruben A. levou-me muito mais longe, até Pascal, o que em termos de cultura europeia me ajudou, posteriormente, no mestrado.
Por exemplo, em Cultura Inglesa, com a Professora Fátima Vieira, e a propósito das teorias sobre a Utopia e, sobretudo, a utopia literária, o nome de Pascal surgiu, pois a sua obra é fragmentada, tal como é a Bíblia...tudo se centra no tempo, no processo de leitura de obras que podem ser lidas independentemente da cronologia. No fundo são espaços que retêm o tempo, mas se mantêm abertos, são comparados aos Templos, há uma relação directa entre exterior e interior, uma comunicação entre o tempo profano e o tempo sagrado...mas já Ticiano representara esta simultaneidade de intimidade e ruptura, com O Amor Sagrado e o Amor Profano.
O Caranguejo não é paginado, pode ler-se da frente para trás e de trás para a frente...claro, tudo isto caíu mal nos meios mesquinhos portugueses, até Salazar ironizou. E Ruben A. sofreu bastante com estes burburinhos maldosos, nada que não conheçamos...já no século XVIII, os italianos diziam isso dos portugueses, a mesquinhez sempre fez parte dos "genes" que transportamos, é o país que fica a perder, é o país que temos ainda. E foi assim mesmo, o projecto começou a ganhar forma e os nomes começaram a surgir, António Dacosta, Barbara Hepworth, Teixeira Lopes, o escultor, tudo nomes que faziam parte dos conhecimentos da família Andresen. Claro, também Sophia de Mello Breyner, prima do Ruben, assim como a pintora Menês. Eu cheguei a pensar:" este homem vai levar-me aos primórdios da criação".
De tal forma era labiríntica esta teia em construção que, depois de lida toda a obra de Ruben A., fiquei logo com o "bichinho" da literatura e, principalmente, da inglesa, encantada que fiquei ao conhecer T. S. Eliot, com quem Ruben A. travou conhecimento. Foi, como se de repente, aquilo que eu tinha sonhado para mim, aos 12 anos, estivesse finalmente a realizar-se. Não era a Faculdade Letras o meu destino inicial? Ali estava eu...não foi logo, mas a altura certa, talvez. Há um tempo para tudo, há que respeitá-lo.


O JARDIM DA MEMÓRIA E A IDENTIDADE


O projecto que desenvolvi nesta Pós-graduação teve um ponto de partida conceptual e ideológico, quer através do confronto entre o pensamento rubeniano e malruciano, quer na influência das Pensées de Pascal na formação do seu pensamento. E depois de ter encontrado uma alusão de António Quadros à obra "auto-biográfica" de Ruben A., em que existe um ponto de contacto com as Antimemórias de Malraux, O Mundo à Minha Procura foi a minha fonte inspiradora. O projecto começou a tomar forma no sentido de o impregnar do espírito intimista, que tem toda a legitimidade de ser, quando se quer transformar um lugar heterotópico, como é um jardim, num lugar de virtualidades e é por essa razão que eu ainda penso nele, porque se mantém actual. E foi muito estimulante ter criado as tensões necessárias a um projecto que, no caso, incidiram no conflito entre a transcendência e a angústia existencial.
Também me entusiasmou ter chegado à conclusão de que seria mais eficaz se partisse do objecto para o sujeito e dos referentes para a fonte, como se decalcasse o gosto de Ruben A. em subir rios. Um movimento de ascensão que se coadunasse com a procura da origem das coisas, desse lado inquieto do escritor...É curioso, na Faculdade de Letras encontrei sempre Professores abertos e receptivos às minhas ideias, eu era uma "outsider"...no fundo, este projecto contempla, quer o aspecto cultural, quer o educativo. Alguns "leimotiv" que encontrei na obra de Ruben A. começaram a impregnar, espontâneamente, o projecto, como o SILÊNCIO, o NÃO-TEMPO, a FANTASIA, o SURREAL. É um projecto de celebração da vida, em que o neobarroquismo manifesta algumas das características do pós-modernismo. A extravagância e, simultâneamente, a ortodoxia delineada num modelo racional, com um formato mais poético das coisas, porque sem ele caía no risco de transformar o projecto num objecto de consumo rápido. Por isso, chego mesmo a pensar que realizei uma metanarrativa do avesso, não em termos literários, mas com os mesmos contornos. Se libertasse o projecto de parâmetros científicos volatilizava-o. Os lugares existem, as personagens são reais, misturadas, é claro, com personagens de ficção, como o bobo Bórbola, do romance de Ruben A., A Torre da Barbela.
É um projecto em aberto, um labirinto virtual que sorve toda a informação possível. O meu objectivo era contemplar novos sentidos de vida, aliar à vida, a arte, sem esquecer as instâncias estética e histórica. No projecto está bem sublinhada a ideia de identidade, uma preocupação em vencer o tempo. A utopia exige acção e a ideia de não-lugar desvirtuou-se na sociedade contemporânea. Os espaços públicos já não são os jardins, mas os grandes centros comerciais, as pessoas abandonaram as cidades, vivem praticamente na periferia, a cidade é um lugar sem vida, um documento abandonado. A verdade é que não há qualidade de vida, o que existem são modelos de gestão dos espaços, em que se fornecem falsas necessidades às pessoas, é uma relação desumanizada baseada apenas no consumismo. Isto é como remar contra a maré, é um projecto muito bonito para ficar na gaveta, quem se interessa por mudar seja o que for? Já não é o sonho que comanda a vida, acabaram-se os fazedores de sonhos.


LUGARES DE OPORTUNIDADES, OU DE EXPECTATIVAS?


Na Faculdade de Letras tive professores muito diferentes daqueles a que eu estava habituada. Tinha convivido com artistas, na sua maioria. O mundo é outro. É um mundo, onde se realizam sonhos, onde se produzem ideias, também é um mundo de expectativas. Entra-se com vontade de se fazer coisas novas, de experimentar. Mas a incursão neste mundo não é nada fácil, não é chegar e imitar o Pollock, atirar tinta simplesmente. Chega-se com muitas ideias falsas, com uma visão muito sublimada da arte. Encontrei logo um Professor de Desenho que se encarregou de limpar as ideias pré-concebidas. Sabia que o Pintor Sá Nogueira era um nome importante das Artes Plásticas, mas foi uma surpresa, convivia connosco, quer como professor, quer como amigo. Íamos jantar com ele e com outros, o Escultor José Rodrigues, o Pintor Henrique Silva, e com os de outra geração, mais novos, o Augusto Canedo, Filipe Rocha da Silva...Tive esse privilégio de apanhar duas gerações diferentes, isso é bom, as vivências são diferentes e enriquece um aluno que chega cheio de energia e entusiasmo. Com o Henrique Silva abriu-se outra porta, as oficinas e as técnicas tradicionais de reprodução. Estas recordações trazem muitas saudades, eles eram marcantes. Não eram meros professores que se limitavam a debitar, ou a despejar informação, não, nada disso, eles abriam portas para outros mundos e sabiam fazê-lo.
Nesse tempo não se aplicavam pedagogias, eram eles a pedagogia viva. Depois, no último ano de licenciatura, tive em Teoria e Crítica da Arte, o poeta Ernesto Mello e Castro. Foi, então, que convivi mais de perto com o mundo da escrita...geralmente retenho nomes e há nomes que parecem chamar-me, não sei como, mas quando o ouvi falar de Ezra Pound suscitou-me logo interesse pela poesia imagista. Já o tinha lido, mas muita gente lê, outra coisa é ler no sentido analítico.
E eu sabia lá que anos mais tarde iria cruzar-me, de novo, com Ezra Pound e com a Literatura Inglesa e Americana? Resumindo, a Pós-graduação foi um bom intermediário entre as Artes Plásticas e a Literatura. Pensei que iria viver da Pintura, mas não aconteceu, participei em algumas exposições e na realização de um mural em mosaico, na Bienal de Cerveira, também, e resolvi enveredar, tardiamente, pela Literatura.
Foi este o meu percurso, às arrecuas, para enganar o tempo! É sempre o tempo que me traz e leva, são os acasos da vida. Um dia estava sentada num corredor da Faculdade à espera da minha orientadora, Drª Leonor Soares, e para passar o tempo peguei nuns papéis esquecidos sobre o banco. Era um texto de literatura inglesa e sobre a importância da fotografia em Virginia Woolf. Copiei-o todo à mão, sou assim, em vez de o fotocopiar, entreti-me manualmente. Tinha abandonado as minhas expectativas, mas estava agora a ter oportunidades únicas, entrar pela porta grande das Humanidades. É aí que me revejo.
A seguir à Pós-graduação entrei para o mestrado em História de Arte em Portugal, não sei bem como aconteceu, dei meia-volta e candidatei-me ao mestrado em Estudos Anglo-Americanos. Tive de ser entrevistada, não pertencia ao meio, vinha de Artes Plásticas, mas era já considerada aluna da FLUP. Quem me fez a entrevista foram o Professor Gualter Cunha e o Professor Carlos Azevedo. Nem sabia qual deles era de Literatura Inglesa, disse logo que a Literatura Americana não era o meu objectivo, antes não o dissesse. Foi nessa área que concluí o mestrado. Só para rir, foi paixão imediata nas primeiras aulas, não há nada a fazer, para mim a Literatura Americana é fascinante. Tive o privilégio de ouvir a Professora Ana Luísa Amaral dizer que eu tinha uma escrita fresca, que escrevia muito bem, não é um bom elogio vindo de uma grande poetisa contemporânea?
Gostaria de viver os anos que me restam só dedicada à investigação na área, sei que é praticamente impossível. Avanço para o doutoramento, mas só por amor à literatura, só por isso. Acabei por me encontrar num lugar de oportunidades, a FLUP. Lá as oportunidades não são sinónimo de concretização de sonhos, mas de abertura ao conhecimento, o resto depende da escolha que cada um faz na sua vida, hoje em dia as pessoas só pensam em sucesso imediato e a todo o custo, não pensam em termos de cumprir uma missão.



PRINCÍPIO, MEIO E FIM


O Mapa da Memória que criei é um documento muito simples de ingressão na identidade individual e na identidade colectiva. É direccionado e tem uma missão, a de representar tematicamente interacções ao nível dos programas escolares.
É preciso ter muito cuidado quando se lançam os alunos em experiências sem "rede". O excesso de informação, se não for bem conduzido, torna-se em desaprendizagem e ameaça a criatividade. A Interdisciplinaridade requer conhecimentos bem aprofundados e com uma sólida formação académica, mas não chega, é preciso saber como relacionar, como "garimpar" nas redes de informação. Costuma-se dizer, aquela pessoa tem olho, o meu olho treinado foi uma mais-valia, basta-me olhar para isolar palavras, para encontrar ligações felizes, mas a verificação científica é necessária. A verdade é esta, os alunos que entram no ensino superior vêm em estado bruto, estou a falar de uma grande parte, limitam-se a sorver informação e a despejá-la.
O pior de tudo é que nem memorizam, ora sabemos muito bem que a memória cose nas tessituras do esquecimento imagens, sons e cheiros, impressões que permanecem, sinestesias que fazem despertar os sentidos. Nas redes de informação tudo é volátil. Esse é o maior perigo.
No Mapa da Memória há uma construção simples, mas em profundidade, há uma dinâmica implícita e convida à contextualização cultural. Ao ter reconstruído a memória de um lugar, como o fiz com o Jardim Botânico do Porto, libertei-o de um sentido institucional, mas inseri-o numa triangulação...Palácio de Cristal e Museu Soares dos Reis...A figura do triângulo não surgiu por acaso, mas por ter investigado em profundidade... não me limitei a recolher informação, cada ponte lançada por Ruben A. foi bem analisada, se assim não fosse nem faria qualquer sentido, o triângulo é uma figura que representa o mundo do escritor que viveu na casa do Jardim Botânico.
Por exemplo, conservação da natureza, parceria entre espaços museológicos, inserção da pessoa na sociedade, isto é uma triangulação possível das identidades, individual e colectiva. Realmente não sou uma pessoa que me disponha ao trabalho de grupo, as minhas ideias são próprias e a minha autonomia levaram-me a fazer um percurso pouco visível e muito solitário, só me interessa o aspecto mais profundo das coisas e depois acabou. O resto é com os outros, não imponho nada... sei que não deve ser fácil entender esta posição, por isso me considero sempre uma marginal.
Se a memória não é algo de abstracto por ser feita de objectos, de bens culturais que são os testemunhos da actividade humana, não se compreende como a realidade das escolas seja um autêntico caos, algo está mal. A potencialidade criativa perde-se na confusão do experimentalismo, na contradição de teorias sobre a educação. O que acontece é haver falta de reflexão. De nada servem as teorias se não se criam condições para ambientes de serenidade e concentração, tudo isto envolve a sociedade, começando com as famílias.
O Professor não tem uma varinha de condão, é uma pessoa e tem as suas fragilidades, hoje é tratado como se fosse um objecto que se manipula e a quem se atribuem super-poderes. O Mapa da Memória tem essa finalidade, sensibilizar a família e a escola para incrementar hábitos de valorização da memória. Cada um de nós transporta uma memória e essa memória não é uma ilha, pelo contrário, move-se nas fronteiras culturais, geracionais, até na dos afectos, mas os afectos não começam na escola, nem a responsabilização dos alunos se decreta, tudo tem a ver com o modo como se conduz o processo de crescimento total da pessoa e isso faz-se em casa. Os Pais deviam ser responsabilizados e nunca o são.


TEMAS AFINS E FINAIS EM ABERTO


Quando concluí o mestrado, as minhas ideias tinham ficado em suspensão, esperei 9 meses para me surgir um possível tema, em vista ao doutoramento. Foi o tempo certo, espero agora que se faça luz!...outra coincidência, mais uma, acabei por ir ter a T. S. Eliot e Ralph Ellison, de novo. A minha tese de mestrado foi sobre o romance deste escritor afro-americano, Invisible Man, sobre o problema da invisibilidade dos afro americanos, do melting pot americano. Identifiquei-me com o tema. Não estava nos meus planos voltar a ele, mas acho que o círculo começa a fechar-se e isso significa que nada ficou definitivamente para trás, pelo contrário, se insiste em voltar é porque eu devo procurar melhor algo que é importante. O fenómeno sociológico impôs-se...encontrei na bibliografia da minha própria tese um autor, e nesse autor a ligação à filosofia das religiões. Acho que fico por aqui, nunca se revelam os segredos. Mas esta descoberta já tinha as suas sementes lançadas à terra antes do mestrado e pelas mãos da Arquitecta Teresa Andresen num seminário de Território, Património e Cultura. Os meus Pais nunca foram de devoções, preferiam aprofundar os conhecimentos da religião, principalmente o meu Pai, gostava de ler teologia, era muito amigo de um teólogo, frade dos Capuchinhos. Senti na minha educação um bom equilíbrio entre o poder patriarcal e o mundo feminino. Compreendo e movo-me bem nestes dois espaços. Gosto da minha feminilidade, assumo-me mulher fora de qualquer padrão, sou eu mesma sem o sentimento de castração do meu eu.



ENTREVISTA:

1ª pergunta:
Como decorreu a tua infância e de que modo ela te marcou?

2ª pergunta:
Agora tens alguma percepção sobre o modo de educar desses tempos?

3ª pergunta:

Pertences a uma geração que participou na viragem política em Portugal, em que medida isso influenciou a tua vida e as oportunidades de realização pessoal?

4ª pergunta:

Falaste muito da importância de ler, da importância da palavra, desde muito criança. Alguma vez te sentiste dividida na escolha de uma carreira? Quem influenciou o teu percurso?

5ª pergunta

Quem foi a pessoa que mais te marcou no decorrer dessa tua insatisfação permanente?

6ª pergunta:

Ao desenhares um mapa, a partir de um lugar real, pensaste em termos de projecção de uma ideia, ou em termos de missão?

7ª pergunta:

Como encaras a mudança das Artes Plásticas para a Literatura?

8ª pergunta:

E agora pensas que vale a pena continuar por esse caminho?

quarta-feira, 15 de julho de 2009




quarta-feira, 8 de julho de 2009




Carson McCullers: A Volatilidade Rítmica Da Dor em The Ballad of the Sad Café


Introdução
No fundo é encontro entre dois que se conhecem num combate igual cada um
quer ter o que ao outro pertence no outro Desejo adulto de posse o seu a seu dona
Ruben A.




As personagens que Paula Rego cria na sua mitologia individual indicam, na configuração das convenções ligadas à complexidade do amor, a alienação e o medo associados aos poderes social, político e religioso, mascarando a normalização dos grupos e dos indivíduos pela dominação física ou mental. Esta dependência criada não só estimula e regulariza o exercício do poder, como lhe confere, na ambiguidade do destino marcado por um suposto amor, subordinado pelo medo, o direito da submissão e da perversão. Dentro deste enquadramento destaco a série Menina com Cão.
Protagonistas desta dupla relação de posse que hierarquiza posições e dentro do quadro privilegia formas, as mesmas poderão ser apreendidas da realidade para serem depois transformadas na narrativa e no discurso do espaço pictórico. A menina que brinca, ou a mulher grotesca que estabelece jogos de perversidade latente nas suas histórias, denunciam por outro lado e ainda dentro destas configurações de poder, falsamente inocentes ou irónicas, a máscara que esconde a verdadeira identidade da figura do poder. É sintomático o facto de o cão representar o género masculino, sendo ele o elo mais fraco e a mulher o género feminino, pois cada um destes personagens afirma a potencialidade da existência que seria impossível se um dos dois estivesse1 ausente. A narrativa vive desta dependência, do eu que vive em função do outro, sendo por ele alimentado e sendo para ele uma razão de viver, substanciada quer pela sua destruição quer pela sua submissão.
Invertido o discurso e expiados os pecados do passado, marcado pelo poder patriarcal, o domínio feminino ou doméstico adquire uma dimensão nova ao expor a denúncia implícita da artificialidade criada na arte, ou na vida, e as suas inevitáveis contradições. Neste sentido, a menina, ou a mulher, não são apenas figuras mordazes da ironia, nem tão pouco modelos da maternidade, mas também figuras que ressuscitam velhos fantasmas nas relações humanas, do mesmo modo que o cão não é um mero brinquedo inerte nas mãos da menina-mulher mas constitui-se sombra destes recalcamentos, vítima inocente dos jogos de dominação, encarnando a dor de toda a humanidade. Imagem divina tal como durante séculos o cordeiro protagonizou o ícone cristão da passividade e da submissão, o cão em Paula Rego é o objecto passivo das forças do caos soterradas no inconsciente. Não é por acaso que a história a originar esta série, segundo Fiona Bradley,1 fale de uma mulher solitária que vive com animais e da voz do vento que lhe ordena que mate os seus animais. Os limites entre o eu e o outro tornam-se tão pouco rígidos que na arte são dissimulados na orgia das formas, a comerem-se umas às outras, lutando por posições hierárquicas que se estabelecem quando a uma forma se acrescenta outra.

***

Por ser de poder que falarei neste trabalho, como adiante ficará assente na exposição do tema “A
Volatilidade Rítmica da Dor”, o sentido de dor, na concentração da acção ou na sua supressão, surgirá como consequência do estar vivo e se revela na rejeição que Carson McCullers faz do género feminino, em The Ballad of the Sad Café (as citações desta obra serão apenas referenciadas pelo nº da página). A condição da existência revela2 um preço elevado e quanto mais elevado ele for mais se enredam as manifestações do amor na trama complexa das construções sócio-culturais.
A negação da cultura, baseada na construção dos géneros feminino e masculino, tendendo a criar assimetrias e a valorizar a representação formal das aparências, surge em Carson McCullers como afirmação de uma realidade outra, estruturalmente mais profunda, de onde são desenterrados os seus anátemas. A solidez da inversão do discurso procura levantar o véu sobre uma natureza ctónica, pondo a descoberto forças do caos. Assentando em formas de rebelião contra a hierarquização dos géneros, a subordinação sexual e a dilaceração da autenticidade surgem em The Ballad of the Sad Café como estratos de uma realidade ensaiada na orla de uma cultura ensombrada pelo progresso abrupto e ideologicamente dominante.
Partindo de uma consonância crítica que identifica a dor com a arte em Carson McCullers e da qual se desenreda o sentir claustrofóbico da identidade dos seus personagens, em confronto com uma realidade pejada de desvios e fronteiras artificiais, proponho-me abordar A Rejeição do Feminino em Carson McCullers, sob a perspectiva da alienação da forma e da imanência de uma essência martirizada pelo decoro ou decorável exterior que a dissimula:


The challenge of form is the measure of insight; the formal tension
between the self and the world in the novel [ The Ballad ] corresponds to
the thematic juxtaposition of the power of love and the presence of pain
(…). (HASSAN:313)

Em consequência desta descarnação, rente à realidade das emoções concentradas, surgem em contra-luz as artificialidades do mundo criado concebidas à margem do natural e que cercam a vida e a arte, distanciando-as uma da outra, introvertidas dentro das suas margens. Amor e dor (derme e epiderme da3 existencialidade) surgem em The Ballad of the Sad Café como elementos de transcendência que se volatilizam nos odores quentes de um Sul mitigado pelo sofrimento e se reflecte na impossibilidade da iluminação interior das suas personagens.
Tendo em linha de conta dicotomias, cujas ramificações formam bipolaridades do excesso, como amor e ódio, feio e belo, rejeição e aceitação, ou mutilação e realização, é em sua função que Carson McCullers encontra a matéria da sua arte, sendo privação na vida real. Espaços de efemeridade e permanência tendem a criar tensões que nos levam à visão do vazio. Sublime, a dor torna-se um espaço infinito, cuja tangibilidade sensorial é também pudor de contenção, perante aquilo que Adorno define “como outrora Poe, o horror do instante de desencantamento como encantamento” (ADORNO:96).
A duração do momento perpetua o efémero, de modo que amor e beleza não podendo resistir à sua forma estagnada absorvem em si a dor, tomando-a como signo do indisível.
A densidade de uma realidade estagnada, sem saída possível para o desespero da sua solidão, enquadra-se na dissolução do eu na sociedade de massas e que a pequena cidade de Miss Amelia Evans reflecte. A esterilidade da sua solidão e isolamento é acentuada no início de The Ballad of the Sad Café e no final do epílogo, por oposição aos doze homens “just twelve mortal men who are together”, como os eleitos das doze tribos de Israel, em demanda da Terra Prometida. Só mediante a esperança do amor se abrem perspectivas que se reflectem na acção e no poder da criatividade revelados por McCullers, através de Miss Amelia: “During these weeks there was a quality about Miss Amelia that many people noticed. She laughed often with a deep ringing laugh(…)She was4 forever trying out her strength, lifting up heavy objects(…) One day she sat
down to her typewriter and wrote a story-“ (p. 45)
Em Carson McCullers, a representação da diferença e da afirmação da identidade traduzem a procura de um sentido do real, uma questionação sobre a verdade que emana do conflito gerado entre aquilo que é o que parece ser, representação que expõe as colisões de valores culturais antagónicos emoldurados pelos respectivos sistemas económicos. A luta do Sul, tradicionalmente agrário, perante a modernização que sobre ele se abate, enquadra-se num espaço enclausurado
pela ideologia americana capitalista, onde se projecta o choque de duas culturas, de dois modos de sentir o lugar. São visões diametralmente opostas, mas que procedem de uma consciência pragmática e hegemónica a assolar uma região que, tendo valorizado o ideal pastoril, se vê desfigurada pela urgência do progresso, enfrentando a mudança em consequência da necessidade de lucro:

McCullers makes a comparison between useful commodities which
have a clearly established value and human lives which do not. The
comparison is seminal here because it is a lack of confidence in their own
human worth which renders the town’s people incapable of sustaining the
transcendent affirmation which was the café. (BROUGHTON:23)

O desejo desumanizado da visão capitalista adopta, na dependência do materialismo, sob o qual se inculca através do sentido dado ao mundo em que se vive, à consciência, o culto do fascínio e o culto do brilho artificial de que decorrem as impressões frias dos sentimentos. A artificialidade deste talento manhoso mercantil e despudorado move-se no espaço da obscenidade que não recusa o discurso destituído de conteúdo mas dele se alimenta. Uma caracterização do modelo tradicionalmente masculino surge aqui, prático e objectivo, racional, em contraponto com as qualidades5 mais sedutoras e sóbrias do Sul, amável, acolhedor e penetrado, no entanto, por uma outra artificialidade conotada ao feminino, o belo.
Mas se a natureza do feminino com os seus outros arquétipos, como a fragilidade, passividade e submissão, aparecem estampados na face mais luminosa da realidade, não é menos verdade estar ela emoldurada pela alienação que destaca o mundo idealizado do mundo real, assente em termos de comparação, de semelhança ou dissemelhança:

The mistake is to think that we can know the truth about things, by
knowing the right names, signs, or representations of them.
But the other mistake is to think that we can know anything without
names, images, or representations (…) when Socrates finishes constructing
his “picture” of human life as a cave, in which we see nothing but the
shadows of images(…) (MITCHELL:92-3)

Na diferenciação sexual, McCullers problematiza os valores de dois domínios de subjugação e manipulação, onde se imprimem as marcas de uma estrutura repressiva institucionalizada na ordem simbólica. Dentro desta ordem surgem, lado a lado, duas formas estereotipadas que deificam na linguagem do corpo traços distintos da definição dos géneros. Duas construções a que correspondem opções estéticas diferentes formuladas em qualidades referenciais distintas, decorrentes do fascínio materialista yankee que promove desejo e necessidade e da sedução idílica de um Sul que não vê na Natureza senão o seu lado mais benevolente, pelo seu lado maternal e passivo, a face natural da bondade e da justiça. Matriz e mãe é na terra que se geram e criam as formas identificadas com os pólos negativo e positivo da criação, vertente da
matéria e da privação.
Existe em Carson McCullers uma necessidade de orientação no espaço e no tempo, tendo em consideração que “memory plays very little part in the lives of6 Carson McCullers’s heroines, and they live in a world practically devoid of traditional Southern feminity” (WESTLING:110). Espaços saturados de uma consciência de fuga, mas estáticos por que enraizados em mitos e tradições “where love and pain secretely meet” (HASSAN:331), fixam nas personagens uma tendência introvertida que os isola nas suas existências limitadas. O passado do Sul e da sua história liga-se ao passado individual do escritor sulista com as suas manifestações sociais e os seus mitos, o sentido do concreto que se materializa, igualmente,na tragédia da condição humana e na consciência da sua finitude. Encrostada nesta vertente da existência, a dor surge, então, como sinal da mudez interior, enraizada no profundo reduto da alma.
É a dor que está na origem da prisão, onde um fio de luz ainda ilumina e faz crer na
possibilidade do infinito, mesmo que silenciado pela aparência da morte.

A Volatilidade Rítmica da Dor

Incluindo, na submissão do eu, o lugar do receptor passivo, Carson McCullers enfatiza em The Ballad of the Sad Café, pela recusa de Miss Amelia em aceitar a sua condição feminina, a alteridade do objecto amado por resistência ao desejo do amante.
Trazendo consequências dramáticas que atingem uma comunidade conformada, incapaz de estabelecer laços reais de confraternal convivência, o comodismo prevalece no isolamento e desolação da pequena cidade sulista, sem nome, onde vive Miss Amelia. Não sabendo, ou desconhecendo os mecanismos do género feminino, ela é derrotada pela sua transgressão, pela ousadia de ter invadido o domínio dos homens. A confusão e alienação não lhe permitem recorrer a outras estratégias, senão as conotadas à violência masculina, sem se aperceber do poder do seu corpo, enquanto mulher. A repressão do comportamento sexual determina a deslocação de uma área da realidade para outra, as relações hierárquicas do poder, assim como a consequente7 dissolução da identidade.
Ao procurar a sua, também Marvin Macy, o marido de dez dias de Miss Amelia, se vê uma vez mais rejeitado pela figura materna. De facto, sendo ela “dark, tall woman with bones and muscles like a man”, Miss Amelia representa, contra o objecto da sedução, o lugar da segurança. Não tendo sido consumado o matrimónio e sendo o sexo o campo de batalha, onde o homem luta para
encontrar o seu lugar de poder no sistema social, Marvin Macy experimenta, no fracasso do amor, sentimentos de revolta e desilusão atingido pela impotência:

Yet Miss Amelia, because she is essentially unfeminine, cannot be
seduced; Marvin confuses her asexuality, and father fixation with personal
strength, and this mistake makes him love her (…) In fact, he is asking her
to be a mother to him, to replace his own lost mother.
The incestuous undertones of this love are mirrored in Miss Amelia
acceptance of him (…) Both Amelia and Marvin project their unconscious
desire onto the other, and both will be mightily disappointed.
(MILLCHAP:15-16)

Movendo-se no espaço dos homens é, no entanto, na condição de mulher que Miss Amelia será, no final, subjugada por Marvin, confrontando-se com a realidade “her arms flung outward and motionless. Marvin Macy stood over her, his face somewhat popeyed, but swiling his old half-mouthed smile.” (p. 68).
A separação entre conceitos que ligam a mulher ao mundo natural e que brotam de uma mesma fonte é posta em causa por Carson McCullers. A força física e o caos da Natureza reprimem os eufemismos ligados à beleza do amor que se desenlaçam das relações humanas com o mundo natural. Na rejeição do feminino está implícita a rejeição de McCullers pela forma esvaziada, que dá a ilusão reconfortante de uma aparente benignidade dessa mesma natureza. Vivendo num mundo interior, “I have my own reality (…) of language and voices and foliage.”, ela recusa o juízo de valor fundamentado na aparência da realidade. Desconstruído o discurso de tal poder, a8 autonomia e liberdade são colocados como oposição desfigurante ao papel tradicional da mulher e à normalização da função do corpo feminino designado por Foucault como “ ‘ docile body’, regulated by the norms of cultural life” (BORDO:91).
Por outro lado, em The Ballad of the Sad Café não existe, pela ausência da figura materna, o tradicional modelo de comportamento feminino, razão pela qual Miss Amelia é provida de qualidades físicas e mentais que são associadas ao carácter masculino.2 Escapando-lhe o corpo em todos os sentidos ela demonstra ter uma personalidade limitada, embora os seus atributos e dotes demonstrem o contrário.
Ficando paralisada perante situações que desconhece ou não domina, as formas extremas aparecem associadas à vulnerabilidade de um corpo sem memória de si, cuja personalidade resulta do fluxo de vivências reduzido a um passado mutilado pela ausência da mãe e a rotineiros movimentos ancorados no seu presente, sendo relações ocasionadas pelos dítames implacáveis do lucro, “So that the only use that Miss Amelia had for other people was to make Money out of them.” (p. 5)
O exercício do poder económico tende a reduzir a libido do corpo, opondo-se à sensualidade da forma feminina, conotada com a imaginação. Há uma conflitualidade que se gera na construção dos arquétipos e se prende com a dissolução da imagem negativa da natureza da mulher, aposta à força da criatividade que, supostamente, pertence ao domínio masculino. O desejo de destruição e violência inerentes ao acto da criação são apropriados pelo poder masculino das entranhas do corpo feminino, da Mãe-Natureza que, sendo exteriormente bela e dócil, abriga nas suas profundezas as forças destrutivas e regeneradoras do caos. Do natural passa-se para a construção artificial do sentido do real, onde o fascínio do sucesso se opõe às formas femininas
de sedução, criando receios e insegurança no mundo competitivo, onde se gera um9 círculo vicioso de necessidades, metamorfoseadas na dependência e protecção e em subterfúgios que ancoram o sujeito à memória da sua infância. O sentimento de solidão e isolamento tornam-no numa ilha de egotismos perante a desolação e futilidade da forma, reflectindo-se no imaginário ligado à androginia, homossexualidade e travestimento, como vias de escape a modelos opressores do papel a desempenhar pela mulher: "Such imagery is directly related to the tradition of the tomboy so dear to the hearts of English and American fathers from late Victorian Times (…). As a girl the tomboy is charming, but as an adult she is grotesque” (WESTLING:11-13).
Carson McCullers tendo encontrado na heterotropia de Miss Amelia um simulacro para nela depositar os seus anseios relativamente ao peso da tradição, o fechamento a uma perspectiva objectivada na expressão da liberdade transforma o olhar descentrado e narcísico da personagem numa patologia de alienação da sociedade, resultante da sua incapacidade de ver a realidade tal como ela é. A esta ansiedade não é alheio o facto de Miss Amelia trocar o vestido vermelho-escuro pelas habituais roupas masculinas, no dia em que trava a luta final com Marvin Macy. Conotada à menstruação e ao parto, a cor revela a informidade da natureza feminina. Esta desordem parece enfraquecê-la. perante o verdadeiro falo, Marvin, mas quer a apropriação da imagem masculina, quer a exteriorização da fealdade, escondida no corpo feminino são formas extremas da realidade e provocações estéticas de que a dessacralização e desintegração social participam:

The Body – what we eat, how we dress, the daily rituals through which
we attend to the body – is a medium of culture (…) the body may also
operate as a metaphor for culture (…). It is also, as anthropologist Pierre
Bourdieu and philosopher Michel Foucault (among others) have argued, a
practical, direct locus of social control. (BORDO:90)
10

É dentro destas construções/constrições que o sexo feminino, ameaçando a ordem social e cultural, aparece dissociada de formas ctónicas, prendendo-se, antes às noções de “beleza” e “estático”, destituídas de carácter e altamente estéticas, ou seja decorativas. Como um campo perceptivo sobre o qual se formam constelações de pontos de vista, o corpo de Miss Amelia transforma-a num objecto ambíguo e vulnerável, dado que na negação do feminino se incluir igualmente o seu contrário.
Assim, as construções artificiais, quer decorrentes do fascínio musculado (masculino), quer da sedução feminina, sendo motivo central em The Ballad, convertem a estrutura da armadura de Miss Amelia no cárcere da sua existência. Os sentimentos de carência e solidão, que ela vê colmatados na relação com Cousin Lymon, são substituídos por uma aparente humanização da sua personalidade:

She still loved a fierce lawsuit, but she was not so quick to cheat her
fellow man and to exact cruel payments. Because the hunchback was so
extremely sociable, she even went about a little – to revivals, funerals, and
so forth.(p. 24)

No entanto, à medida que os anos avançam, depois da abertura do café, Miss Amelia fica quase confinada ao espaço da casa e se antes da chegada de Cousin Lymon ela percorresse a região não há qualquer expressão nos seus movimentos, ou aproximação à Natureza. As imagens sugeridas são de retesamento e circunscritas a espaços desobjectivados, fora da estrutura do espaço histórico.
A própria cidade situa-se algures, como se fosse invisível no traçado do mapa, estando apenas definidos os seus limites “the nearest train stop is Society City, and the Greyhound and White Bus lines use the Forks-Falls Road which is three miles away.” (p. 3) Neste espaço de tempo interino, em que uma luz radiosa parece iluminar os corações de Miss Amelia, de Cousin Lymon e dos habitantes da cidade, as ansiedades continuam latentes:11

And the years that followed, Marvin Macy was not altogether forgotten
in the town. His name was never mentioned in the presence of Miss Amelia
or the hunchback. But the memory of his passion and his crimes, and the
thought of him trapped in his cell in the penitentiary, was like a troubling
undertone beneath the happy love of Miss Amelia and the gaiety of the
café. So do not forget this Marvin Macy as he is to act a terrible part in the
story which is yet to come. (p. 34)
A Natureza e a civilização, a ordem e a transgressão, o calor de uma utopia degenerada, como é o café de Miss Amelia, são os limites mais tangíveis dos mecanismos da identidade perdida. Uma identidade que Marvin vê usurpada e os dois precisam definir, porque apesar de ser a intenção de lucro que move Miss Amelia, eles partilham o mesmo desejo de explorar os sentimentos dos outros. Nesta economia de troca alguém terá de ser o objecto tomado e embora ela se identifique com a força da opressão é por ser o único método que conhece para se opor à opressão, utilizando o seu corpo como uma linguagem de afirmação, razão pela qual existe uma dinâmica de promessa concretizada temporariamente na atmosfera calorosa do café: "Most studies of The Ballad emphasize only McCullers’s theme of spiritual alienation and irreparable loneliness; they seem to disregard the fact that aloneness was, for a time at least, actually overcome (BROUGHTON:23)".
Parece haver uma real e concreta possibilidade de escape à solidão, pelo equilíbrio encontrado por Miss Amelia, no exercício do seu papel masculino junto do falso falo, que é Cousin Lymon e que acentua, por outro lado, a confirmação do seu lado intuitivo através de um dom feminino, a cura das maleitas que afligem os seus conterrâneos. Mas as múltiplas conflitualidades interiores, geradas dentro do círculo da solidão e para o qual são atraídas, fatalmente, as personagens, entorpecem a vontade de alcançar o espaço inacessível da intimidade. Como figuras sombrias de um destino inevitável e irremediável elas são apanhadas na teia de uma cultura dividida12 que inibe e reprime a expressão, transformando os sujeitos em sombras presas na distância do tempo e do espaço, tocando-se ciclicamente, mas separados pelo agente abstracto de um poder que os atrai e os vitimiza, emoldurados pela decadência e por um sentido desvirtuado de honra:

Amelia is left in the prison of her aloneness because the stereotyped
patterns by which she encountered others were exclusively those of
dominance or subjugation. She has known no way to love without selfabasement.
Nor has Marvin Macy. Nor has Cousin Lymon. And selfabasement
can only result in resentment and eventual retaliation, so Marvin
Macy has his own turn taking from Amelia and then, with Lymon’s help
destroys the café in order to get his own back from her.
(BROUGHTON:28)

O particular do outro torna-se numa referência existencial externa, através da qual se inicia a construção da própria identidade, permanecendo como significante do equilíbrio emocional.
Ninguém é livre sozinho, é-o antes no seio das relações materiais e na sua significação existencial, como Panthea Reid Broughton diz:

(…) for McCullers, who madepersonal alienation that explicit single
concern of all her fiction, treats the solitude of the heart with both
objectivity and compassion and, ultimately, with an understanding born of
the blending of head and heart. (BROUGHTON:21)

Miss Amelia toma o seu corpo como um lugar de combate, de resistência à normalização e, no entanto, o amor emerge da superfície dura do seu carácter. O dom que ela possui, isto é, a sabedoria que lhe permite manipular a Natureza e diagnosticar as doenças dos outros, parece ser uma forma real e transcendente de amar: “But Miss Amelia used a special method with children; she did not like to see them hurt, struggling, and terrified.” (p. 39)
Por outro lado, o seu amor por Cousin Lymon fica aquém deste acto de gratuidade, é um falso remédio (um paliativo) para mitigar as lacunas da sua 13 existência vazia e embora possa parecer, ou seja de facto uma relação materialista, Miss Amelia dedica-se-lhe totalmente. Abrindo-lhe o coração ela fecha-se no seu casulo de esperança:

Of course, they were in their café every morning, they would often sit
for hours together by the fireplace in the parlor upstairs. For the hunchback
was sickly at night and dreaded to lie looking into the dark. He had a deep
fear of death. And Miss Amelia would not leave him by himself to suffer
with this fight. It may even be reasoned that the growth of the Café came
about mainly on this account; it was a thing that brought him company and
pleasure and that helped him through the night. (p. 25)

As contrapartidas destas relações inserem-se nos mecanismos de identificação, desejo e narcisismo, que mantêm as personagens perdidas nos reflexos dos espelhos que as cercam e distorcem a realidade.
Há, ou parece existir, em Carson McCullers um fascínio pela simultânea perda da realidade e da objectividade, pela negação de referências pré-estabelecidas e que se tornam marcas de alienação na construção dos personagens. Nos valores atribuídos aos laços estabelecidos entre Amelia e Cousin a ilusão do amor faz perder a objectividade do amante, não se apercebendo que o amado já ultrapassou as fronteiras da relação e tomou o seu lugar. Embora seja de posições territoriais que Miss Amelia, Marvin e Cousin Lymon pretendam definir, há um laço que os une e identifica, a ausência da mãe durante a fase da infância. A imagem da figura materna surge diluída neste espaço contorcido, onde se repetem até ao infinito padrões de identidades deformadas, procurando no outro o retorno ao passado para recuperar o objecto perdido, formando, consequentemente, uma trindade que apenas comunga a solidão, uma estéril forma destacada da vida e da fecundidade da criação, pelo que só na violência e destruição, passiva ou activa, infligida aos outros ou auto-infligida, 14 pensam encontrar, estando perdidos, a cura para as suas deformidades físicas ou morais.
A passagem abrupta da infância para a idade adulta, em que fica restringida a liberdade da indiferenciação sexual, tem sobretudo em Miss Amelia efeitos grotescos que traduzem desajustamentos na adaptação social e desequilíbrios emocionais e retesam ainda mais o seu isolamento.
Esta desconfortável posição nascida das pressões exteriores da sociedade perante comportamentos considerados não-convencionais, irregulares e excêntricos, ou seu silenciamento, advogam as angústias existenciais da própria McCullers “I was born a man” (WESTLING:119). O seu repúdio pela imagem da mulher, artificialmente construída, corresponde a uma consciente destruição do seu significado e de todas as implicações estéticas a ele coladas: “She deliberately dressed in men’s clothes, flaunting her androgyny at Yaddo during the summer of 1941 when she was writing The Ballad of the Sad Café (…)” (WESTLING:119).
A centralidade do poder de sedução feminino é substituído por uma outra forma de alienação, que ao negar a subjectividade do género feminino investe na desobjectivação e na ruptura funcional do corpo, obscurecendo os limites das fronteiras convencionais que definem os papéis diferenciados sexualmente.
Desconstruindo o discurso do poder, Carson McCullers só pode aceitar a deformidade como substituto do simbólico na ordem patriarcal, forma de subversão ao estereótipo feminino, ou seja, a beleza. A percepção do objecto belo associado ao sentido único que dele decorre, sedutor/seduzido, atribui-lhe a aura do eterno feminino que nega à mulher uma existência real enquanto sujeito. Mero receptáculo das ambições e desejos do eu masculino, o outro, o objecto, o feminino, o seduzido, sendo sedutor passivo, 15 transforma-se numa presa dos jogos de sedução masculino dos quais emana uma cultura que privilegia a ilusão, como meio de escape às forças negativas da realidade.
Carson McCullers coloca do avesso a máscara da sedução, subvertendo os desejos do sedutor, Marvin Macy, um homem fisicamente atraente, mas moralmente perverso e violento, que vê em Miss Amelia não o objecto sexual de desejo, mas um objecto de fascínio pela solidez da sua personalidade e força física que ele identifica com a mãe ausente. Sem quaisquer referências, materna ou paterna, Marvin procura a segurança emocional de que foi privado quando a mãe o rejeitou, deixando-o abandonado ao destino. E como Carson McCullers diz “The heart of a hurt child can shrink so that forever afterward it is hard and pitted as the seed of a peach” (p. 29), o
desenvolvimento de cada um dos personagens que formam o triângulo amoroso foi afectado desde a infância, física ou moralmente, intempestivamente e fora do tempo, provocando-lhes um crescimento anormal, uma espécie de raquitismo espiritual.
Mas, Miss Amelia recusa ser esse objecto de um destino que é só passado, de um início sem começo e que é apenas fim. Sem modelo referencial, ela rejeita Marvin Macy na noite de núpcias e rodeia-se de objectos que lhe trazem a recordação reconfortante do pai: “She pocked up the fire, sat down, and put her feet up on the kitchen stove. She read the Farmen’s Almanac, drank coffee, and had a smoke with her father’s pipe” (p. 31), afirmando-lhe o seu carácter masculino. O valor do significado que Carson McCullers dá à masculinidade é não só o da segurança afectiva, mas o da compensação.
A inversão dos papéis em The Ballad of the Sad Café traduz de algum modo a desorientação do eu perante a agressividade do outro e as tradicionais funções atribuídas à mulher e ao homem no domínio sexual. O desconforto de quem é amado é o mesmo de uma alteridade transferida para o lugar do eu que se vê aprisionado, ou 16 despojado da sua identidade. Tendo a percepção de si, como objecto permanente, o perigo de uma real desobjectivação da personalidade não só é inevitável, como se torna instrumento de incomunicabilidade. Revelando-se num conflito interior, que não sendo apenas circunscrito ao Sul, o mesmo pode ser questionado como representação universal de um sentir individual e que escurece o limiar da existência, perante as
relações de consenso entre formas da ideologia capitalista e as formas culturais
ligadas a valores mais regionais ou humanos.3
Entre o poder económico, com as suas formas abstractas da arte, com o seu sentido de culto da arte e as formas culturais de um Sul que crê na vida como termo central da criação, o novo conceito de fronteira na sociedade moderna a partir dos anos 30 coloca o Sul comprimido entre a desolação e o desenraizamento cultural, que também já nos anos 20 se havia sentido, pelo desfasamento entre o ideal americano e a realidade:

Frontier period conflicts with the changed economic structure of an
industrial society which is in the process of consolidation (…). The
conflicts produced in the American personality a deep seated conflict
between the driving desire to make a success in the competitive world (…)
(HARTSHORNE:128)

Há um mundo privado que Carson McCullers criou em The Ballad of the Sad Café, feito de isolamento e necessidade de refúgio na infância decepada pela ausência materna, de uma infância cuja memória está construída sobre lapsos da memória, de um esquecimento das origens e que Miss Amélia, inconscientemente. atribui à bolota encontrada no dia da morte do pai, separando-a definitivamente do mundo das afeições. Sendo um fruto ambíguo, ele pode ser visto como um símbolo fálico, ou um símbolo da filiação materna ligado à terra. 17
Carson McCullers atribui aos objectos sentimentos e frustrações que reflectem o mundo interior das personagens e que na ordem do simbólico são representações exteriores dos estados/estádios da alma, suportes de uma transcendência erradicada do sujeito. Neste sentido, a rejeição do feminino transparece na selectiva colecção de objectos que são a versão do gesto individual, da extrema solidão de Miss Amelia, e que a aportam ao mundo real, ao mundo masculino, aquele que constitui o arquivo das suas memórias.
Desconhecendo o significado do vestido de noiva da mãe, que veste no dia do seu casamento com Marvin, ela demonstra uma total inocência relativamente à realidade do mundo feminino e à sua função nesse mesmo mundo real. Em contrapartida, as botas ou o cachimbo do pai institucionalizam o discurso do poder masculino que lhe é familiar e fixam ao quotidiano as práticas a ele ligadas, definindo gestos e comportamentos mais musculados. A partir da natureza indomável de Miss Amelia, Carson McCullers transforma a mulher num anti-ícone e liberta as forças intangíveis da sua forma constritora, fazendo a transição do sublime para o espaço da
fealdade, revelando um novo aspecto da realidade que o é da condição humana. Mas este sentimento de libertação sem mediação, equivalente à inconciliação estética, impossibilita o fluxo natural da vida, por ser resultado da perda de focalização de Miss Amelia no seu olhar errante. A forma tende a encerrar-se dentro de si mesma, ela tende a criar a partir de si fronteiras de espaços rígidos e, ao mesmo tempo, silenciados pela perda da esperança:

For three years she sat out on the front steps every night, alone and
silent looking down the road and waiting. But the hunchback never
returned (…) It was in the fourth year that Miss Amelia hired a Cheehaw
carpenter and had him board up the premises, and there in those closed
rooms she has remained ever since.(p. 70)

A casa, a mulher, a Terra, aparecem como representações da imobilidade, centros magnéticos destituídos de acção. E em cada retorno das estações a visão degenerativa da paisagem é o próprio reflexo da decadência de Miss Amelia.
Indicativo da ruína de uma cultura perdida na abstracção do materialismo, a derrocada de Miss Amélia traduz o desequilíbrio da própria sociedade. A vaga impressão de um fantasma queassoma à janela da casa remete-nos para um mundo de pesadelo, onde não existe acção possível, onde todos os sentidos ficaram aprisionados no reduto insustentável do vazio.


Conclusão

McCullers rejeita o feminino, encerrando a porta de um cruel destino, que no zelo da sua forma aliena a mão do olhar, o mais próximo e directo executante da mente, mediador entre a arte e a vida, pela mão hábil de Miss Amélia, escrevendo uma história sobre “ foreigners, trapdoors, and millions of dollars” .
A ambição pela autonomia e independência entram em colisão com o desejo de ordem e se Carson McCullers acentua, no estrabismo de Miss Amélia, a ausência de um ponto de fuga concreto fá-lo, tendo consciência da desorientação e da dispersão que ela provoca na sociedade:

The people would have helped her if they had known how, as people in
this town will as often as not be kindly if they have a chance. Several
housewives nosed around with brooms and offered to clear up the wreck.
But Miss Amelia only looked at them with lost crossed eyes and shook her
head. (p. 69)

A luta pelo domínio e autonomia, através da destruição do simbólico na construção social, acciona mecanismos auto-destrutivos e de defesa que se tornam paralisantes e inconsequentes. Por paralisia pode ser entendido o narcisismo 19 fisiológico de Miss Amelia, que Carson utiliza provocatoriamente para destruir no mito de narciso o belo da forma exterior, reflexo artificial que é mera estagnação.
Se na rejeição do feminino se rejeita a sedução, máscara que esconde o grotesco da vida, ela pode existir independentemente da natureza da forma, ou das qualidades atribuídas aos géneros, por ser inerente à condição do ser humano, equacionada no epílogo através das vozes dos doze homens agrilhoados que reconstroem a auto-estrada, The Forks Falls. E nesta fronteira que emoldura a cidade sem nome de Miss Amelia encontra-se, simbolicamente, o fascínio da Americanização com a sedução quente do Sul, o fascínio do carácter musculado com a sedução feminina da cultura sulista que emana da terra para se expandir sem limites, no mesmo sentido gótico ascensional e transcendente:

All day there is the sound on the picks striking into the clay earth, hard
sunlight, the smell of sweat. And every day there is music. One dark voice
will start a phrase, half-sung, and like a question. And after a moment
another voice will join in, soon the whole gang will be singing. The voices
are dark in the golden glare, the music intricately blended, both somber and
joyful. The music will swell until at last it seems that the sound does not
come from the twelve men on the gang, but from the earth itself, or the
wide sky. It is music that causes the heart to broaden and the listener to
grow cold with ecstasy and fright. (p. 71)

Segundo Freud e Lacan existe no inconsciente um desejo culposo pela perda da unidade holística. A separação do corpo da mãe dramatizada por Carson McCullers, em Miss Amélia, Marvin e Cousin, leva a que cada um deles procure no outro um ideal fora do alcance da realidade e que só existe no plano do imaginário.
O amante não conseguindo persuadir o objecto do desejo, o ser amado, fica despojado dos sentimentos mais positivos que possui, dependendo dos sentimentos de frustração, rejeição e agressividade. Esta relação que foi anunciada na introdução, a 20 partir da obra plástica de Paula Rego, constituíu-se, ao longo do trabalho, como matriz para a exploração de relações profundas em The Ballad of the Sad Café.
A rejeição do género feminino, em Carson McCullers, tal como Paula Rego o faz com os seus
bonecos, equivale à rejeição da relação entre objecto da arte e objecto de consumação, a uma desintegração da estrutura da ordem social e simbólica que radica em formas tradicionais de representação dos modelos feminino e masculino. Na mulher sublinham a indiferença passiva não lhe consentindo sair do estatuto de mero objecto.
Não sei se seria menos correcto dizer que, em Carson McCullers, a representação de outras formas se aproxima mais à representação alternativa do sublime recolhida do joio, do que propriamente de uma preocupação em pôr a nu normalizações de percursos históricos que incidem, dela tirando proveito, na figura tradicional da mulher dentro da convenção do casamento.
Neste sentido, a rejeição do feminino é, sobretudo, uma forma de resistência à rejeição da mulher no mundo da arte.
O amor em Carson McCullers desvincula-se da particularidade, pretendendo atingir o universal, em busca de uma possível conciliação estética, livre como os sons saídos da Terra que penetram no íntimo da mais insignificante forma de vida, na simplicidade cósmica dessa mesma vida, contrastando com a complexidade do amor:

Son, do you know how love should be begun? The boy sat small and
listening and still. Slowly he shook his head. The old man leaned closer
and whispered: A tree. A rock. A cloud.(p. 150)

É nesta simplicidade que se concretiza o sonho, aspiração do ser humano que o conduz ao caminho da liberdade. Livres continuam a ser os sentidos, esses sentidos que entrelaçados na memória se volatilizam em última instância, ou última respiração,
no infinito, janela aberta para a esperança. 21


Referências bibliográficas:

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Young, Marguerit(1947). “Metaphysical Fiction” ─ ─ ─

Notas:

1 – Verificar Bradley, Fiona. Paula Rego. Catálogo da Exp. Na Tate Gallery (1997).
2 – Em “Wunderkind”, primeira história publicada de Carson (1936), o corpo da jovem Frances é um obstáculo para a sua realização artística enquanto pianista sendo ultrapassada pelo jovem violinista 22 Heime. A dor do crescimento, associada à passagem da adolescência para a idade adulta, amplia a conflituidade de uma identidade em formação que parece congelar-lhe os sentidos, mediante a evidência da realidade do mundo da arte dominado pelo género masculino, quer na sua produção quer na sua recepção. Um corpo que se vê impossibilitado de desempenhar uma técnica conotada ao vigor sente, na rejeição do feminino, a humilhação como imagem da expressão máxima da dor.
3 – Verificar Bercovitch, Sacvan.(1990) “Afterword” in Ideology and Classic American Literature.
Bercovitch and Myra Jehlen. Cambridge: Cambridge University Press. p.422: “As Slotkin unfolds their meanings , myths, history, and ideology continually interact and redefine each other: myth as ideological import; ideology as a reaction against the historical constraints of myth; myth as a source of resistance to ideology; myth and ideology as the bases of social consensus and as the vehicles of contradictions that give rise to new forms of expression.”


Índice:


Introdução . . . . . . . . . . 1
A Volatilidade Rítmica da Dor . . . . . . . . 7
Conclusão . . . . . . . . . . 19

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