MARTINHO OFREDUCCIO:O GATO POETA

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domingo, 28 de junho de 2009







SÃO POEMAS CAÍDOS COMO MAÇÃS MADURAS


EM ÁGUA CORRENTE VINDA DE LONGE]




TODOS OS SONS SE CALAM

QUANDO O SEU ALMÍSCAR

SE COLA AO MUSGO

E É TÃO PURO O SEU OLHAR

COMO É DA FONTE O SEU CANTAR[





ABRIU OS OLHOS

E MORDEU O ESPELHO

ONDE O FOGO

SE UNIU À POLPA BRANCA

DAS PRIMEIRAS MAÇÃS

segunda-feira, 22 de junho de 2009


A ESQUADRIA DA INVISIBILIDADE EM RALPH ELLISON

***


A análise deste trabalho é uma maneira de ler o conteúdo de uma perspectiva do romance Invisible Man, focalizada no fenómeno do tempo, tendo como modelo a substância da realidade do negro americano a dar expressão aos sulcos subtis da reflexão teórica.
Em cada um dos três capítulos fui considerando a natureza do pensamento do escritor afro-americano Ralph Ellison num exercício de compreensão das múltiplas contradições e ambivalências existentes no seu primeiro romance, publicado em 1952. Ligado às correntes existencialistas do pós-guerra e inspirado, igualmente, pelo transcendentalismo emersoniano, a vivacidade natural da sua própria cultura dotou-o da capacidade de apreensão da transcendência resgatada das areias movediças do determinismo. Na metáfora do buraco/cave desenrola-se este fenómeno da descida e ascensão do herói, conduzindo-nos ao desdobramento de planos numa viagem encetada por caminhos inicialmente manipulados e depois improvisados, permitindo-lhe percepcionar os subterrâneos do poder. Desde logo, o acordar da alienação para a possibilidade de sublevação às forças do mal radicaliza a transformação de uma identidade a descobrir-se pela reflexão num tempo aberto à imanência da forma. Aliás, o segredo inviolável do conteúdo do envelope que Bledsoe lhe entrega, quando deixa o colégio e parte para Nova Iorque, um falso salvo-conduto para um falso éden, é exorcizado nas chamas da própria ficção. O poder da História escrita pelo branco transfere-se de uma pretensa ordem universal para o cosmos de uma identidade em explosão. O negativo fotográfico deste instante é resumido em “colorlessness”, daí a aparição da forma conteudal do romance: ”Life is to be lived, not controlled; and humanity is won by continuing to play in face of certain defeat...Our fate is to become one, and yet many...” (577).
A hipótese, por mim levantada, de a personagem deste romance estar num processo de simultaneidade na de-construção dos alicerces da sua identidade, enquanto escritor, como projecto conceptual concretizado na reversibilidade de um cubo iluminado, parte de um pressuposto, das 1369 lâmpadas da cave iluminada pelo herói que o Prólogo coloca desde o início: “Nothing...must get in the way of our need for light and ever more and brighter light.”(7). O leitor é colocado sob uma perspectiva fixa, olhando o ponto mais iluminado do espaço, o tecto, num movimento único e possível de rotação, dando a ilusão de movimento à personagem. Se partirmos do princípio que o tempo é crucial para a compreensão do acto simbólico de iluminação interior, teremos de ter em consideração que o Prólogo e o Epílogo nos reenviam compulsivamente para uma forma de circularidade aberta, que repele o rebatimento da face da morte. Neste sentido, “brighter light”, ou ponto cego da luz, como acto de iluminação, corresponde ao acto simultâneo da escuridão: “The end was in the beginning...Thus I have come a long way and returned and boomeranged...” (571-573). Este retrocesso no tempo, de um modelo cartesiano para uma visão cosmológica, é representado pelos nós do tempo: “... those points where time stands still or from which it leaps ahead.” (8).
Mas o mais elucidativo desta visão é o facto de ao tempo ser associada a acção, através da expressão musical: “ And you slip into the breaks and look around. That’s what you hear vaguely in Louis’ music.” (8). Ora a propagação do som através do ar e seguidamente a referência ao espaço de profundidades infernais, na alusão a Dante, implicam em primeiro lugar que ar e fogo (céu e inferno) são os elementos de sublimação do acto criativo, na correspondência com o agora mágico. Daí incorre a importância da cultura dos afro-americanos, através da expressão oral, da expressão musical, com os blues e o jazz, e da sua dupla-visão de um mundo que aspira o ideal democrático mas que o trai sistematicamente na galopância do tempo, no paradoxo de um futuro que se anuncia altamente tecnológico e sistémico, em que a realidade pessoal é suprimida pelo empirismo de modelos estandardizados.
A absurdidade da comunicação tinge o episódio de Golden Day, com a fragmentação visionária/visão fragmentária do tempo subjectivo das personagens, cuja pertinência abismal se imprime nas páginas dos 25 capítulos, quando isolados do Prólogo e do Epílogo, confirmando aquilo que Bergson diz: “ A inteligência só consegue captar o descontínuo”. Ora à intuição se deve uma forma de conhecimento natural, cuja fluidez espontânea se distancia do mecanicismo. Por isso é que o compromisso ético se torna tão importante para o escritor Ralph Ellison, que ao criar a sua personagem, a confronta com a angústia das suas memórias, de modo a lançar uma ponte entre as duas margens do ser. A realidade ficcional inibe a distância entre o sonho e a temporalidade de um corpo que se procura num permanente recomeço. Fugindo da obscuridade alheia IM procura na sua paisagem interior a diferença, valorizando a sua humanidade.
A contaminação da palavra encontra-se presente no romance, quando a Brotherhood o sistematiza, dominado pelos espartilhos demagógicos de Brother Jack e pela lavagem ao cérebro do zeloso Brother Hambro: ” Hambro’s lawyer’s mind was too narrowly logical” (500). A crispação estrutural de um lugar, inicialmente disforme, é anulada pelas sinestesias que emanam sob um punhado de terra, constituindo-se um anti-poder à tentativa de apagamento da forma em processo de vir-a-ser, isto é, de todo o conteúdo do seu passado, daí a fuga para o presente. IM resiste à tentativa de categorização, no Hospital da Fábrica, ao ser lobotomizado, recusando a noção gestáltica de forma, pois é na expressão e na sublimação da dor que o afro-americano reconhece a sua cultura e encontra a sua diferença. Por outro lado, a rigidez retira a inocência ao jovem IM, afastando-o da intensidade poética do azul que ele irá recuperar no acto redentor da sua castração, isto é, durante a experiência de privação. É a esta forma de vidência que Nietzsche proclama ao dizer: “ E, se fogem do presente para o passado, sempre os meus olhos encontram a mesma coisa: fragmentos e membros avulsos e horrendos acasos, mas não homens...Redimir os passados e transformar todo “foi assim” em “assim eu quis”-somente a isto eu chamaria redenção.”
Existe, porém, uma secura formal de contornos neo-platónicos, granidos no ser puro do belo, isto é, na superfície polida do aquém-tempo, daí que “ [a]s palavras fogem e passam”, como diz Stº Agostinho. Este ser puro é o eu desinteressado. O compromisso último de IM está gravado no anverso da máscara da invisibilidade. O valor matricial do abismo sugere sinais de encerramento perante o caos, mas tendo escolhido a transfiguração através da procriação, ao contrário da imolação trágica de Tod Clifton, o herói transmite sinais de abertura nas dimensões evocativas do tempo, num esforço de abraçar o mundo. O desejo de criar parece ter ficado aprisionado, desde o início dos tempos, ao brado da solidão e à inquietação espiritual. Talvez seja essa a razão pela qual no início do Génesis o caos seja associado à água: “O Espírito movia-se sobre a superfície das águas”. Retomada a força primitiva e simbólica da água, durante o motim em Harlem ”...a rush of water coming through distantly...I stumbled about in circles “(561), a conjugação de elementos, que aliam o caos apocalíptico ao nascimento, mergulham a personagem na fonte dos afectos, ou seja, no coração do tempo, para ir beber a identidade perdida na perspectiva funda do tempo. Na mais remota interioridade do ser, o silêncio da ausência de Deus, ou carência sentida por Ralph Ellison, tal como Sartre, pela privação da figura paternal, ainda crianças, impõe-se procura do centro do mundo, onde o mutismo é substituído pelo calor da presença de uma voz, a de Louis Armstrong, concebida como uma nova instituição. Este descentramento corresponde à identidade encontrada na libertação da palavra, compensando a ausência do objecto da memória, marca da cegueira da sociedade maioritariamente branca, como o Homem Invisível denuncia ao esbarrar com o sonâmbulo. Assim, o anverso da visão transforma-se na consciência de uma inconsciente realidade assumida no lugar simbólico das ressonâncias do corpo no espaço, que de forma irónica nos obriga a ter sentimentos estéticos libertos da imagem ideal; de certo modo “Black is Beautiful” será esse mesmo anverso. O buraco abriga, no duplo movimento da personagem, entrando e saindo da sua própria obra, a figura do tempo. Deste modo o encontro irónico do destino, entre IM e Mr. Norton, não é senão o encontro da consciência com os fragmentos de uma ilusão mediática. A esse mediático imediatismo, como orador treinado, IM vira as costas, percebendo que a invisibilidade transformada da indiferença é a melhor arma para combater o inimigo. A lição do avô revela a fundura do eu, na esquadria da invisibilidade, expoente da pureza de quem pode ver através das pálpebras abertas da escuridão. A luz ao avançar no terreno húmido da cave dá visibilidade à escuridão que a engole. É como se o seu enunciado partisse da raíz do tempo e aí retornasse, apagando tudo o que, desde então, foi escrito, até chegar à ilusão do seu reflexo: “I am an invisible man”.
Faz sentido falar da transformação do plano bidimensional, como lugar das ideias, em espaço tridimensional, ou seja num potencial espaço virtual, quando a luz se acende no espírito e se envolve no imprevisível mundo matérico, onde a experiência do acto criador passa pela suspensão do ser para poder emergir do ciclo constante do tempo que ao empurrar o herói para o futuro lhe nega, simultaneamente, esse mesmo futuro: “ It was a fall into space that seemed not a fall but a suspension...And in that clear instant of consciousness I opened my eyes to a binding flash” (230). Este banho no aglutinado do branco mais puro da América, que abastece Washington, simboliza a descida do negro às águas infernais do racismo e do segregacionismo, mas representa, igualmente, a vitória da ascensão, quando se tornar soberano e senhor do seu destino. Impregnado de luz, IM despe a pele ressequida do tempo das suas ilusões. A iluminação através da sabotagem institucional, condena-o, porém, ao isolamento que o impede de sair do reduto embrionário para onde volta, depois de se confrontar com o irremediável destino da humanidade mergulhada na estranheza da noite. Esta impossibilidade compromete o escritor implícito à redução de um eu, em permanente demanda de si: “Who knows but that, on the lower frequencies, I speak for you?” (581). As visões edénicas são des-articuladas pela temporalidade, oferecendo a possibilidade do nascimento do escritor, como sentido de uma viagem iniciada há vinte anos atrás, aquando da morte do avô. É essa reversibilidade do sim e do não, que o avô lhe deixa no leito da morte, como legado cultural de uma memória que, sendo reportada ao tempo da escravatura, se perpetua nas emoções exteriorizadas nos objectos de que IM se rodeia, suporte dos sentidos a preencher a carência do negro num mundo desagregado, permitindo-lhe estabelecer elos de continuidade e afectividade com a vida. Recordando as palavras de Isaías e as de Emerson, que eu cito na pág. 14 do meu trabalho, comparadas às de IM verifica-se o conflito entre a palavra divina e a palavra do homem: “ Eu sou o primeiro e o último, não há outro Deus fora de mim...” (Is:44), “ Oh! Se rasgásseis os céus, se descêsseis, derretendo os montes com a Vossa presença!” :(Is:64); “ But if the soul is quick and strong it bursts over that boundary on all sides and expands another orbit on the great deep, which also runs up into a high wave, which attempt again to stop and to bind. But the heart refuses to be imprisoned” (Emerson citado do meu trabalho); “I had to have a light...I needed just one piece of paper to light my way out of the hole...I tried to reach above me but found only space, unbroken and impenetrable” (567). Desta impenetrabilidade na dura pedra da verdade resulta uma desviante da centralização da cultura e consequente sentido de responsabilidade da minoria negra dignificada na circunscrição de uma nova visão analítica, vazando do conceito de “melting-pot”.
Há uma promessa traída, subentendida na impenetrabilidade, derivante do conflito da separação entre espírito e corpo, razão pela qual IM se enfia na terra para comungar com o natural aquilo que o artificializante lhe negou. A “experiência eterna” da visão platónica, na sua limitação espiritual, colide com a experiência do negro, pois é nas batidas do jazz e nos azuis marcados na sua carne que ele dá expressão à sua realidade. O sentido último da personagem é o Verbo e é aí que ele se detém. Enquanto a voz de Louis Armstrong representa a presença, conclui-se que Ellison despojou do centro da órbita mais interior dos círculos emersonianos a negatividade, instalando aí a substância do real. Esta voz representa a espessura do ser na sua inteireza e simboliza a imagem da memória.
CONCLUSÃO:
O conceito de civilização reformula-se na face iluminada do novo Adão que se debate nas repetições exaustivas do seu sistema, no sentido de depuração da forma, sem lhe retirar, no entanto, o improviso, o miolo da sua memória, resistindo à negação da vida. Como um coração que vitaliza o 1ºromance de Ellison, no ritmo unissonante do sim e do não, a função orgânica do jogo que o escritor estabelece com o leitor é a mesma de “call-and-response” na performance jazzística, de identificação entre o eu e o outro, o indivíduo e o grupo. O tempo, em Invisible Man, é uma nesga de passagem da eternidade para a existência e desta para a liberdade encontrada no acto da escrita e é por esta ordem que a vida dá sentido à morte. Firmamento de constelações do absurdo, ou de processos encadeados na luz da palavra, o tecto iluminado simula o transbordar de um céu amortalhado na lonjura de uma América sonâmbula.

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